Todas as manhãs, em Serra Talhada, Luiz Alves de Souza, 70, toma as ruas da cidade com uma caixa de som, um aparelho de DVD, um pen drive e cerca de 100 folhetos de literatura de cordel. Lado a lado, aparato eletrônico e livretos se unem sobre um pequeno carro de mão. Essa foi a estratégia que o Cordelista Cacique, como é afamado na cidade, encontrou para lutar em favor da poesia popular. Ele faz questão de percorrer vários quilômetros por dia na intenção de vender literatura. O cordelista conta que seus concorrentes já haviam desistido da briga com a tecnologia. A maioria mudou de ramo. Mas, fã da poesia popular, não arredou o pé. Decidiu seguir em frente. E como fez para ligar isso tudo, Seu Luiz? “Ah, eu’buli’ sem medo”, respondeu. Segundo Cacique, as vendagens de cordel foram diminuindo conforme as novidades eletrônicas iam aparecendo. O plano, então, foi aliar-se ao inimigo.

Curiosamente, tudo começou quando migrou para a cidade grande, São Paulo, no final da década de 80. Lá, deu de cara, numa banca de revistas, com vários livretos produzidos (polemicamente) em escala industrial, pela editora Luzeiro. Com formato diferente (aparenta ser um gibi) este tipo de cordel invadiu Serra Talhada pelas mãos do cordelista. Trouxe 6 mil deles. No primeiro mês, assim que regressou, vendeu mais de 900. “Naquele tempo o povo ainda gostava.” Seu arroubo empresarial deu tão certo que o levou, durante cinco anos, a viver só do comércio de rimas. Hoje, também vende, além de literatura de cordel, CDs com cantorias de aboio.

Mesmo conjugando música e literatura num carro de duas rodas, parece sem fim a luta de Seu Luiz pelas ruas da cidade. Pois, em sua casa, no bairro do Alto do Bom Jesus, ainda existe um rio de folhetos, que não desaparece desde a década de 80. E tudo vai ficando guardado, meio sem querer, em caixas de papelão espalhadas pelo chão da sala. Aposentado, ele pretende caminhar sem descanso para não deixar sua paixão morrer.

DO CORDEL AO PEN DRIVE - Cordelista enfrenta a modernidade
 A CHAVE DA LEITURA 
 
Cacique acredita que a população de Serra Talhada perdeu o gosto pela poesia. E compara com seu tempo de criança: “O povo matava um boi para ficar a noite toda comendo e escutando cordel até o amanhecer”. A explicação desse desgosto poético se encontraria na ausência de incentivo à leitura. “O povo não está sendo mais educado para ler nada”, garante, o cordelista.

Em 2008, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, encomendada pelo Instituto Pró-Livro, divulgou dados sobre como os brasileiros encaram as páginas. De 172 milhões de pessoas letradas (92% da população total), 77 milhões delas foram classificadas como não-leitores. Os que se dizem leitores (95 milhões) leem 1,3 livro em 365 dias. Nos Estados Unidos, esse número sobe para 11, anualmente. Segundo a pesquisa, o que falta é a descoberta, a chave que liga subitamente o sujeito à leitura.

No caso de Cacique, essa chave girou quando criança. O menino Luiz Alves tinha largado a escola para ajudar nas despesas de casa e trabalhava como entregador de pão, quando uma das funcionárias da padaria declamou alguns versos. “Achei aquilo bonito demais.” E decidiu que ia aprender a ler literatura de cordel sozinho. Começou a ir para feiras e praças apenas ouvir poetas e cantadores declamando. Primeiro, decorou versos, depois as estrofes, até construir a ligação com a palavra escrita.

Hoje, o sertanejo orgulha-se de si. Ainda é capaz de declamar vários folhetos, apesar de às vezes a memória falhar um pouco. Tem na boca a rima da vida e um dente de prata que reluz toda vez que sorri. Quando anda, as pernas fazem dois arcos, ameaçando desistir de sustentar o corpo. Mede cerca de 1,70 metro e possui, na pele e nos olhos, a escuridão da noite. Tem apelido Cacique não sabe a razão. Porém adora ser chamado pelo título de mandachuva tribal.

É um senhor vaidoso. Certa vez pagou para virar estrela de cinema. Em 2007, o documentarista argentino Alejandro Garcia, radicado em Serra Talhada, foi contratado por Cacique para produzir um vídeo, que se chamou Minha Vida Passo a Passo. Com mais de uma hora de duração, no filme Cacique conversa mais da vida dos outros que da sua. Entre versos e aboios, também vende no seu carrinho, por R$ 5, aquilo que deveria ser uma biografia.

Cacique: Serra Talhada perdeu o gosto pela leitura
Muita gente nem duvida do seu tino empreendedor. Com o capital de giro do comércio áudio-literário ambulante, investiu até na padronização de um uniforme de trabalho, que lhe custou R$ 4 a costura (pois a camisa já tinha). Na altura do busto, estampou “Cordelista Cacique”, que se pode ler em cor verde-limão sobre o azul-marinho da camiseta, e pôs em baixo a foto de um rapaz garboso, no melhor estilo Marlon Brando. “Sou eu com 20 anos.”

O folheto que mais vendeu até hoje foi O Romance do Pavão Misterioso, que já foi tema de novela e carrega polêmica em sua autoria, pois ainda não se confirma com certeza se foi escrito por José Camelo de Melo Resende ou João Melquíades Ferreira da Silva, poetas paraibanos que viveram no final do século 19.

Seu Luiz nem liga para tamanha indefinição, quer mesmo é vender literatura popular, e cobra R$ 3 pelo livreto. “Com esse aí eu quase enriquei”, brinca. Um pouco caro se comparado ao preço do mercado, que custa, em média, R$1,50. E ele sabe disso. No entanto, na selva tecnológica, o cordelista Cacique tenta ser o predador, não a vítima. Garante que, mesmo intermitente, o voo do pavão ainda o mantém vivo na cadeia alimentar.

ORIGEM DO CORDEL

O folheto de cordel chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses e chamou-se assim pelo fato de ser comercializado em barbantes ou cordões. No entanto, estudiosos no assunto afirmam que, entre a população nordestina, essa expressão literária adquiriu outro significado tanto no nome, como no sentido e na forma de venda.

No Nordeste, tornou-se filha legítima das cantorias e pelejas transmitidas oralmente, enquanto o folheto português foi fruto do surgimento da imprensa, a partir de 1450. Além disso, até meados da década de 1960, nesta região, o livreto rimado era conhecido apenas como verso, peleja ou folheto de feira. Só depois que um grupo brasileiro de pesquisadores da Fundação Casa de Rui Barbosa achou por bem canonizar o projeto literário à maneira lusitana.A literatura de cordel significa a transposição para a forma escrita de poemas, canções, aventuras e epopeias recitadas em voz alta. É uma das expressões artísticas mais ricas de nossa literatura e símbolo da cultura popular.

*Fotos: Giovanni Alves Duarte.