Publicado às 05h44 desta quarta-feira (12)

Coluna SAPIÊNCIA com PAULO BEZERRA*

*Mestre em Biodiversidade e Conservação pela UFRPE-UAST/ Bacharel em Ciências Biológicas pela UFRPE-UAST. / Coordenador do Grupo de Estudos em Ecologia e Conservação da Herpetofauna-GEECOH

 

Aoô Sapiens,

Continuando a nossa prosa, eu trago para vocês em mais uma matéria da coluna Sapiência a curiosa e intrigante relação entre a produção de um afrodisíaco pela medicina popular chinesa e o abate de jumentos no Nordeste brasileiro! Mesmo castigado a chibatadas, sentindo o chicote estalar no couro, carregou no seu lombo pesos descomunais. Era telha, tijolos, cimento, ‘carradas’ de areia, brita, feiras, encomendas e ‘precisões’.

Levou o sertanejo em seu dorso e outros ‘desbravadores’ pelos Grandes Sertões e suas veredas. Esse importante aliado na construção e desenvolvimento do Nordeste de outrora, ainda hoje é animal de carga e ‘meio de locomoção’. Agora é visto aos poucos em vilarejos, fazendas, beiras de estrada e nos grotões. O Rei do Baião reconheceu sua importância primordial para o povo nordestino e fez apologia numa enaltecedora, mas reflexiva canção ‘Apologia ao Jumento’!

O jumento é nosso irmão, quer queira, quer não. O jumento sempre foi o maior “desenvolvimentista” do sertão! Ajudou o homem na vida diária. Ajudou o homem, ajudou o Brasil a se desenvolver. Arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha. Fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem. Fez a feira e serviu de montaria. O jumento é nosso irmão…

E o homem em retribuição o que, que lhe dá? Respondendo a pergunta de Seu Luiz, o que a humanidade ofereceu em retribuição por tanto auxilio e progresso alcançado com o jumento foi promover seu próprio risco de extinção e como sempre o Homo sapiens só causa problema à natureza como garantia de contrapartida, mas que danada é essa gratidão, opa ingratidão?!

O jumento ou jegue, conhecido cientificamente por Equus africanus asinus é um animal célebre e simbólico do Nordeste. Apresenta grande importância histórica, econômica e cultural. Um grande companheiro de labuta do Caatingueiro e figura tradicionalíssima do Sertão cujas populações do Nordeste podem estar correndo risco iminente de extinção.

Essa espécie está sendo abatida aos milhares no Nordeste brasileiro e exportada para o mercado chinês. Em Amargosa, munícipio baiano, funciona o Frinordeste (cuja planta industrial pertence à JBS) que é o principal frigorífico responsável pelo abate de jumentos no Brasil. Atualmente, cerca de 1.200 animais são abatidos semanalmente e enviados à China, segundo informações de funcionários que preferiram manter seu anonimato.

Os animais são mortos com um tiro de espingarda de ar comprimido entre os olhos. A parte do animal que mais interessa aos chineses é o couro, que é retirado, ainda em solo brasileiro e transportado para China onde é transformado em um tipo de gelatina que é utilizada para fabricar o Ejiao, um produto medicinal bastante típico, conhecido e lucrativo da medicina tradicional (questionável) chinesa. Já a carne é enviada para o Vietnã onde é bastante apreciada.

Em tempos de pandemia as ‘cobranças’ e a necessidade por comprovação cientifica ficaram em evidencia no país e o público em geral teve mais proximidade com alguns aspectos das metodologias cientificas tornando-se mais habituado com essas prerrogativas necessárias ao ‘fazer ciência’. E como esperado tratando-se de um produto da medicina tradicional, não há comprovação cientifica de que o Ejiao funcione. Entretanto, no país asiático, ele é usado no tratamento de diversos problemas de saúde, como ciclos menstruais desregulados, quadros de anemia, insônia e até impotência sexual.

Pesquisadores brasileiros da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP desenvolveram uma pesquisa sobre comportamento, bem-estar e manejo de jumentos e publicaram recentemente um artigo no Jornal Brasileiro de Pesquisa Veterinária e Ciência Animal sobre o assunto. Considerando estritamente os registros do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o abate cresceu em mais de 8.000% entre os anos de 2015 e 2019, quando foram mortos 91.645 animais.

Enquanto que entre 2010 e 2014, pouco mais de 1.000 animais foram abatidos no território brasileiro. Os autores do estudo relataram que a taxa atual de abates colocou a espécie sob risco. Estima-se que o rebanho de jumentos no Brasil seja de 400.000 animais. Um dos fatores complicadores surge da taxa de reprodução e inserção de novos indivíduos não apresentar a mesma velocidade das perdas de indivíduos em decorrência dos abates. O que implica na diminuição da população de jumentos no Nordeste.

O abate de jumentos é aprovado por lei no Brasil há muitos anos. O decreto 9013/2017 confere legalidade à atividade e permite o abate de jumentos e outras espécies. A partir de um levantamento de dados do MAPA, o artigo mostra que foram abatidos legalmente 135.254 jumentos entre 2002 e 2019. A média até 2010 era de 4.825 abates anuais, caiu para 46 por ano entre 2011 a 2014 e voltou a subir, atingindo a marca de 1.435 em 2015 e 2016. Os pesquisadores Adroaldo Zanella e Mariana Gameiro, autores do estudo comentaram a situação das estatísticas em torno dos abates de jumentos:

“Em 2017, foram registrados 26.127 abates e, em 2018, o número subiu para 62.622, porém, em 2019, o abate legal caiu para 25 animais, pois a atividade foi banida do Estado da Bahia devido a uma ação da sociedade civil ajuizada em novembro de 2018, mas revertida em setembro do ano seguinte. Entre 2002 e 2010, foram exportadas, em média, 7.354 toneladas de peles e couros por ano, a maior parte para atender à demanda de países europeus pela carne e couro de cavalos, mas uma proibição da União Europeia fez a média diminuir para 18,3 toneladas anuais entre 2011 e 2020. Em 2019, as exportações foram de 98,8 toneladas, um aumento de 4.640% em relação ao ano anterior, que provavelmente está relacionado com o aumento do abate de jumentos e da exportação de peles, principalmente para China, Hong Kong e Vietnã.

Grande parte do mercado global de pele de jumento opera de maneira ilegal e os dados sobre as transações no mercado externo e o número de abates são subestimados. Nesse contexto de ilegalidade, é comum acontecer roubos e captura de animais abandonados em estradas e compra e venda de jumentos por preços abaixo do valor de mercado.

De modo que esses animais não possuem registros ou comprovações em relação às suas condições de sanidade, trazendo à tona uma realidade preocupante para a saúde animal e humana. Os pesquisadores alertam sobre os riscos dos abates ilegais: “A Bahia concentrou a maior parte dos abatedouros que passaram por inspeção federal. Tudo improvisado, sem equipamentos adequados e sem treinamento para o abate. O transporte e a aglomeração provocaram distúrbios metabólicos que causaram morte e sofrimento de milhares de animais.”

Em números oficiais, apenas na Bahia há registros de 84.112 abates legais de jumentos entre 2017 e 2019. Entretanto, esses dados não expressam o número real de abates, pois, o número é efetivamente maior, em função dos abates ilegais. Além disso, inúmeros jumentos são capturados em estradas ou comprados por até 30 reais para serem encaminhados para abatedouros ilegais.

Um relatório da ONG The Donkey Sanctuary, afirma que cerca de 64 mil jumentos foram abatidos no Brasil em 2021. Se levarmos em consideração as demais perdas de indivíduos por outras razões, o número de animais mortos pode ser calculado em torno de 76.800 jumentos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE apontam que no último censo em 2017, a população brasileira de jumentos era de 376.874 animais, sem contabilizar os animais abandonados.

O mercado em alta demanda e com excelente margem de lucro propiciaram condições para que empresários chineses enxergassem no Brasil uma grande oportunidade de fazer um verdadeiro “negócio da China”. O país dispõe de um rebanho abundante de jumentos. Atualmente apenas em Amargosa, são 4,8 mil animais abatidos todo mês — 57,6 mil por ano. Além do frigorífico da cidade, existem outros dois com permissão para operar à atividade nas cidades de Simões Filho e Itapetinga, também no estado da Bahia.

Estima-se que o mercado em torno do produto Ejiao movimente cerca de bilhões de dólares por anualmente. Uma peça de couro pode ser vendida na China por até 4 mil dólares (cerca de 22,6 mil reais). Já uma caixa de Ejiao custa 750 R$. No Brasil, os valores do comércio são bem menores e alguns jumentos são negociados por ínfimos 20 reais em localidades no sertão, e depois são vendidos aos chineses.

A dependência econômica da cidade de Amargosa é um dos fatores responsáveis pela manutenção desse mercado na cidade, tornando-se o município brasileiro que mais registrou abates de jumentos. O prefeito Júlio Pinheiro relata que o comércio de peles e carne de jumento é o terceiro setor que mais gera empregos na cidade, perdendo apenas para uma fábrica de calçados e a própria prefeitura. E afirma que esse mercado é primordial para movimentar e aquecer a economia local. “O frigorífico têm ajudado na geração de renda e de empregos diretos, ainda mais num momento tão complicado da economia do país, sobretudo com a pandemia. O frigorífico tem sido a sustentação de centenas de famílias aqui na cidade”.

No Brasil, o jumento é mais uma espécie entre tantas outras que pode estar com seus dias contados e as populações que ocorrem no Nordeste podem entrar para as estatísticas de extinção local, tendo em vista que a espécie ocorre em outros continentes como a África. A crise global de perda de biodiversidade infelizmente vai ganhando novos personagens e o homem segue promovendo a ‘Sexta Grande Extinção’ de espécies e adicionando mais uma, mais uma e mais uma na lista, até não sobrar nenhuma espécie que não seja o egoísta Homo sapiens.

Saudações Darwinianas

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Referências

Gameiro, M. B. P., Rezende, V. T., & Zanella, A. J. (2021). Brazilian donkey slaughter and exports from 2002 to 2019. Brazilian Journal of Veterinary Research and Animal Science, 58, e174697. https://doi.org/10.11606/issn.1678-4456.bjvras.2021.174697

BBC. O trágico destino dos jumentos do Nordeste, abatidos para fazer remédio na China. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59771116. Acessado em 09 de janeiro de 2022.

JORNAL DA USP. Abate de jumentos para exportação cresce 8.000% e ameaça a espécie no Brasil. https://jornal.usp.br/ciencias/abate-de-jumentos-para-exportacao-cresce-8-000-e-ameaca-a-especie-no-brasil. Acessado em 09 de janeiro de 2022.