Publicado às 07h deste domingo (27)

Por Diego Kehrle, colunista do Farol, Mestre em Literatura e Culturalidade (UEPB), Licenciado em Letras (UAST), atualmente é Diretor Pedagógico do Colégio Francisco Mendes

A sociedade confunde abuso emocional e manipulação psicológica com educação. Quem é professor já se deparou com a cobrança de gestores e de famílias que fazem exigências completamente irreais em relação ao desempenho escolar dos estudantes, transformando a vida de crianças e jovens em verdadeiro inferno. Isto se torna ainda mais preocupante quando, enquanto sociedade, não somos capazes de reconhecer as consequências psicológicas e emocionais dos efeitos negativos causados por estas práticas e cobranças.

Por outro lado, na linha de frente do processo, temos nas escolas profissionais que se autonomeiam professores, que defendem provas, notas e outros mecanismos pedagógicos baseados na classificação, na competição, na comparação negativa, na exclusão e no constrangimento, sem a mínima compreensão dos efeitos psicológicos e sociais de práticas como estas – que inclusive foram agravados pelo desequilíbrio mental e socioemocional (de longo prazo) causado pela pandemia de Covid-19.

Não estamos atrás de culpados, pois a escola e a violência social do nosso mundo capitalista pisotearam tanto a nossa sensibilidade e distorceram tanto os nossos valores, através da desigualdade social e de uma coerção muitas vezes não percebida, que normalizamos uma educação fundamentada na chantagem emocional, na pressão psicológica, na cobrança desumana, no medo da punição e na exigência de desempenho sobrehumano. A justificativa usada é a de que estamos preocupados com o bem e com o futuro das crianças e jovens. Tudo vale para prepará-los para o futuro, muitos repetem: os fins justificam os meios. Será mesmo?

Não é incomum ouvir pessoas emocionadas contando como sofreram durante a vida escolar para alcançarem, hoje, uma situação social e econômica digna, da qual se orgulham com razão. No entanto, talvez seja justamente este sofrimento e os seus efeitos, os principais motivos pelos quais estas mesmas pessoas não sejam capazes de perceber e admitir que os meios usados por tanto tempo, para os fins que dizemos almejar, sejam os piores possíveis.

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Ou seja, o raciocínio é bastante simples: já que sofremos tanto para chegar até aqui, somente este caminho de sofrimento, de pressões, de medos, de ameaças e de competição é legítimo e “eficiente”. O problema é que a psicologia mostra que os efeitos na verdade causam o contrário daquilo que estas pessoas acreditam, prejudicando fortemente o desenvolvimento emocional, social e cognitivo dos estudantes.

Olhamos para uma criança em formação escolar e a enxergamos como se ela estivesse num processo idêntico ao de uma empresa que precisa dar lucro e vencer as concorrentes. Cobramos a prática daquilo que fizeram conosco. Se nos olhássemos no espelho e refletíssemos seriamente sobre os efeitos dessas violências sobre nós, coisa que não temos a coragem de fazer, nunca exigiríamos ou permitiríamos a repetição do mesmo processo escolar para os nossos filhos e estudantes.

Num ambiente familiar, social ou escolar em que não há reflexão, como pode surgir uma educação baseada no cuidado, na atenção, na escuta ativa, no acolhimento, na compreensão, no amor e na admiração incondicional, na construção gradual de relações de afeto e de sentido, no desenvolvimento da autonomia, da solidariedade, do espírito de cooperação por meio do respeito, da responsabilidade e da empatia? Não é possível.

A escola tradicional, com a desculpa de que nos preparava para o vestibular, nos treinou durante mais de 15 anos para sermos o contrário de tudo isso e levou junto a nossa capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros, de tratarmos os outros como eles gostariam de ser tratados e de refletirmos criticamente sobre quem nos tornamos. A nossa sociedade confunde a deformação de caráter, produzida pelo ambiente competitivo, individualista e excludente da escola, por meio da aplicação de provas e notas, com educação. Não suportamos pensar que estamos enganados e que usamos o amor como justificativa para o abuso emocional e a manipulação psicológica, pois são estes os efeitos destas práticas escolares.

Segundo o pensamento treinado para se basear em resultados imediatos, é preciso ocupar todo o “tempo útil” dos estudantes, manter um alto desempenho, corresponder às expectativas, apresentar evidências concretas de resultado, fazer igual ou melhor que os outros e ser sempre eficiente. É urgente garantir o futuro, diz um pai que olha para a filha como se esta fosse um investimento financeiro ou uma empresa e não uma pessoa.

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Enquanto isso a infância é estraçalhada. Criamos monstros que enxergam os outros e suas relações como coisas das quais devem esperar vantagens (lucros), de forma egocêntrica e individualista (já que todos somos concorrentes) e sem medir as consequências. Estudar e aprender são vistos como meios para alcançar uma vantagem e não como possibilidade de aprendizado humano, de transformação social ou como busca espiritual.

Do investimento você busca uma mensuração contínua, um rendimento à altura das expectativas, uma diminuição crescente dos riscos futuros e resultados garantidos. Aplicar o raciocínio financeiro ao modelo de formação escolar de crianças e jovens é como sufocar a curiosidade que quer entender em que mundo nasceu, é como passar um trator sobre as emoções que se formam e buscam estabilidade, é como destroçar o olhar que busca se reconhecer e se firmar, é como esmagar a novidade que cada criança pode trazer ao mundo antes mesmo que essa possa florescer. É a violação completa da necessidade de acolhimento que cada jovem necessita diante de um mundo caótico e desumano.

Anestesiados, muitos de nós defendem processos completamente incoerentes, ultrapassados e que impossibilitam a formação de pessoas sensíveis, éticas, autônomas, cidadãs e de pensamento crítico. Trocamos o aprendizado pelo decoreba, pelo volume pesado de atividades acríticas e criticamos de forma irracional os que tentam fazer diferente. No fim das contas, ignoramos os meios usados e seus efeitos devastadores sobre as novas gerações e reclamamos que “essas crianças de hoje são diferentes daquelas de antigamente”.

Se tivéssemos aprendido a analisar a realidade de modo crítico, bastaria ligar a TV para entendermos os efeitos reais causados por todos nós, que passamos pela escola convencional: que legado coletivo e social construímos e deixamos para as próximas gerações? Desigualdade, injustiça social, violência generalizada, desequilíbrio ambiental, fome, desemprego, autoritarismo, egoísmo, individualismo?

Os valores disseminados na sociedade são estes. Está óbvio que este modelo de sociedade e de escola não deu certo – as pessoas que passaram por ele quase nada fizeram para cuidar do mundo em que vivemos. O problema não está em quem chega, mas em quem acolhe e como educa. Os que chegam deveriam experimentar aquilo que não vivenciamos, tendo a formação que não tivemos para que um dia sejam capazes de realizar aquilo que não fomos capazes de fazer.

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O que nós temos feito? Repetimos tudo que fizeram conosco. Qual a lógica de esperar resultados diferentes ou melhores fazendo as mesmas coisas? Isso é loucura. A nossa situação é esta: temos alunos do século XXI, sendo ensinados por professores do século XX, numa escola criada no século XIX.

Estamos dispostos a nos olhar no espelho enquanto sociedade? Famílias, escolas e secretarias de educação que defendem práticas pedagógicas criminosas e sem base científica praticam e apoiam abusos emocionais e psicológicos responsáveis pela deformação do caráter, comprometendo não apenas a saúde mental das crianças no presente, mas também a longo prazo. O que faremos quanto a isso?

Quem você gostaria que o seu filho ou filha se tornasse no futuro, como pessoa? Que práticas a escola dos seus filhos adota neste sentido? E você, professor ou professora, que práticas têm colocado em ação na formação dos seus estudantes? Quais os valores que estão por trás dessas práticas?

Como diz o Prof. José Pacheco, fundador da Escola da Ponte, o professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. A família, por sua vez, não ensina aquilo que diz, transmite ao filho aquilo que é. Parafraseando o querido mestre, se a escola não ensina apenas conteúdos, mas transmite os valores que fundamentam as suas práticas, precisamos refundar a escola a partir de outros valores.