Pessoas aguardam na fila do lado de fora de restaurante em Paris-FOTO: FOTO; Dmitry Kostyukov/The New York Times

Do o Globo

 

Os clientes de uma livraria de Roma não prestam mais atenção aos adesivos circulares no chão instruindo-os a eliminar a Covid-19 mantendo “uma distância de pelo menos um metro”.

— São coisas do passado — afirmou Silvia Giuliano, 45, que não usava máscara enquanto folheava livros de bolso.

Ela comparou os sinais vermelhos que tinham o formato do coronavírus a “tijolos do Muro de Berlim”.

Por toda a Europa, adesivos, placas e outdoors desbotados permanecem como resquícios fantasmagóricos de lutas passadas contra a Covid-19. Mas, enquanto os vestígios dos dias mais mortais da pandemia estão por toda parte, o vírus também está.

Um refrão ouvido em Europa é que todos têm Covid, pois a subvariante ômicron BA.5 alimenta uma explosão de casos em todo o continente. Os governos, no entanto, não estão reprimindo a circulação de pessoas, incluindo em nações anteriormente mais rigorosas. Em grande parte porque não há um aumento significativo de casos graves, nem unidades de terapia intensiva lotadas ou ondas de morte. E os europeus concluíram claramente que precisam conviver com o vírus.

Assentos com placas desbotadas pedindo aos passageiros do metrô de Paris para manter aquele local livre quase sempre são ocupados. Multidões de alemães sem máscaras passam por placas desgastadas em lojas e restaurantes que dizem “Maskenpflicht” (exigência de máscara). Em uma loja de materiais de construção ao norte de Madri, o caixa percorre os corredores sem máscara antes de se sentar atrás de uma vitrine de acrílico. Em um dia recente no Caffè Sicilia, em Noto, na Sicília, os pés de três pessoas diferentes compartilhavam um único círculo de “Mantenha distância segura” enquanto seus donos clamavam por um cannoli.

E muitas pessoas estão viajando novamente, tanto dentro da Europa quanto fora de suas fronteiras, trazendo dinheiro muito necessário para países desesperados para fortalecer suas economias.

— Assim são as coisas — comentou Andrea Crisanti, professor de Microbiologia que atuou como consultor de líderes italianos durante a emergência do coronavírus.

Segundo ele, um lado positivo foi que as infecções deste verão no Hemisfério Norte criaram mais imunidade para os meses de inverno, tradicionalmente mais difíceis. Mas deixar o vírus circular em níveis tão altos, disse ele, também cria um “dever moral” para os governos de proteger os idosos e vulneráveis ​​que permanecem sob risco de doenças graves apesar da vacinação.

— É necessário mudar nosso paradigma. Não acho que as medidas destinadas a reduzir a transmissão tenham futuro — afirmou Crisanti, listando motivos como esgotamento social com restrições, maior aceitação do risco e a biologia de um vírus que se tornou tão infeccioso o ponto de que “não há nada que possa parar isso”.

Esse parece ser o caso em toda a Europa, onde as autoridades se consolam com a incidência aparentemente baixa de doenças graves e mortes, ainda que alguns especialistas se preocupem com o número de pessoas vulneráveis, com a possibilidade de que a infecção de rotina possa levar a uma Covid longa e com aumento do potencial de mutações que levem a versões mais perigosas do vírus.

— As infecções não estão mostrando sinais de diminuição, com taxas se aproximando dos níveis vistos pela última vez em março deste ano, no pico da onda ômicron BA.2 — disse Sarah Crofts, que lidera a equipe analítica do escritório de estatísticas da União Europeia.

As internações mais do que quadruplicaram desde maio, segundo dados oficiais. Mas as mortes causadas pelo vírus, ainda que em ascensão, não se aproximam dos níveis registrados no início do ano.

— No geral, do ponto de vista da saúde pública, precisamos permanecer vigilantes, mas isso não é motivo para reverter o curso — disse Neil Ferguson, pesquisador de saúde pública do Imperial College de Londres.

Algumas mudanças ocorreram. Em abril, a Agência Europeia de Medicamentos disse que uma segunda dose de reforço só seria necessária para pessoas com mais de 80 anos, pelo menos até que houvesse “um ressurgimento de infecções”. Em 11 de julho, decidiu que o momento havia chegado, recomendando segundas doses de reforço para todos com mais de 60 anos e todas as pessoas vulneráveis.

“É assim que nos protegemos nossos entes queridos e nossas populações vulneráveis”, disse a comissária europeia para Saúde e Segurança Alimentar, Stella Kyriakides, em uma declaração escrita. “Não há tempo a perder.”

Em toda a Europa, as autoridades estão tentando encontrar um equilíbrio entre tranquilidade e complacência. Na Alemanha, o Instituto Robert Koch, responsável pelo rastreamento do vírus, disse que “não há evidências” de que a trajetória da variante BA.5 seja mais letal, mas o ministro da Saúde, Karl Lauterbach, compartilhou tuítes postado por um médico de um ospital na cidade alemã de Darmstadt dizendo que a ala para pacientes de Covid de sua clínica estava totalmente ocupada com pacientes gravemente sintomáticos.

O conselho de vacinas da Alemanha ainda não atualizou sua orientação para uma quarta dose: atualmente um segundo reforço é recomendado apenas para maiores de 70 anos e pacientes de risco.

Na França, onde uma média de 83.000 casos por dia foram relatados na última semana, cerca de um terço a mais do que um mês atrás, o ministro da Saúde, François Braun, evitou novas restrições. Em entrevista à rádio RTL, Braun afirmou na semana passada que “decidimos apostar na responsabilidade dos franceses”, recomendando o uso de máscaras em locais lotados e incentivando uma segunda dose de reforço da vacina para as pessoas mais vulneráveis.

Ele parece confiante em que a França, onde quase 80% das pessoas estão totalmente vacinadas, e seus hospitais, poderiam resistir à nova onda de infecções, e se concentra na coleta de dados para rastrear o vírus. “Medidas mínimas, porém necessárias” eram a abordagem correta, disse Braun recentemente à Comissão de Leis do Parlamento. Na semana passada, uma proposta para estender o poder do governo de exigir prova de vacinação ou teste negativo de coronavírus ao entrar na França não foi aprovada na Assembleia Nacional.

Na Espanha, onde a taxa de vacinação está acima de 85% e mais da metade da população elegível recebeu um reforço, a pandemia ficou em segundo plano enquanto os espanhóis voltaram às suas férias habituais na praia e receberam ansiosamente os turistas. As autoridades, encorajadas pela baixa ocupação das enfermarias de terapia intensiva, disseram que o monitoramento da situação seria suficiente. Nem todos ficaram satisfeitos.

— Esquecemos praticamente tudo — disse Rafael Vilasanjuan, diretor de Política e Desenvolvimento Global do Instituto de Saúde Global de Barcelona, ​​um órgão de pesquisa.

Mas outras partes da Europa estão ainda mais livres. Na República Tcheca, onde não há restrições, inclusive em hospitais, o vírus está desenfreado e as autoridades preveem abertamente um aumento crescente nos casos.

Na Itália, o primeiro país ocidental a enfrentar toda a força do vírus, os relatos de novos casos aumentaram desde meados de junho, embora tenham caído na última semana. O número médio diário de mortes mais que dobrou no mês passado, mas os hospitais não ficaram sobrecarregados. O ministro da Saúde, Roberto Speranza, anunciou que o país seguiria a recomendação do regulador europeu de oferecer uma segunda dose de reforço para todos com mais de 60 anos – não apenas para maiores de 80 anos e pacientes vulneráveis.

— Na situação atual, é preciso implementar uma política integrada para proteger as pessoas vulneráveis ​​que, apesar da vacinação, ainda correm o risco de desenvolver doença grave — disse Crisanti, ex-consultor de líderes italianos sobre o vírus, que lamentou o que disse ser um número ainda enorme de mortes todos os dias por uma doença infecciosa.

Ele previu que, com o tempo, à medida que os idosos vulneráveis morressem, as mortes causadas pelo vírus diminuiriam e o vírus se tornaria cada vez mais endêmico. Ainda segundo Crisanti, os sistemas imunológicos das pessoas na faixa etária de 70 a 90 anos no futuro terão memória e proteção contra o vírus.

Nesse ponto, os sinais gastos da luta da Europa contra a Covid realmente pertenceriam a outra era. Enquanto isso, outra mulher na livraria romana, esta com uma máscara N95, temia que os adesivos sob seus pés se tornassem relevantes novamente.

— A realidade passa mais rápido que as leis — afirmou.