Às vezes, ocorre-me que as coisas da minha casa estão cheias de conversas. Os armários, a louça usada na pia, os legumes…

 Hoje pressenti que a metade do mamão que eu cortara para o café da manhã estava assim, a escorrer de palavras, sentimentos, sentidos.

Primeiro pensei em desprezá-la, por causa do seu amadurecimento exagerado, sua polpa em grande promiscuidade com sementes e espécies de talos endurecidos, denunciando algo como um acidente de percurso, quem sabe uma doença…

 Foi quando escutei sua fala, aflita, adocicada.

 – O que pensa você sobre esse meu estado, faca cingida ao meu ponto de corte, a desvendar, sem apelação, essa minha pequena trajetória?

Que julga você que esteve envolvido, para que esse seu prosaico momento acontecesse, nessa manhã de sábado, defronte da sua pia de cozinha?

Silenciada, como um médico apanhado em falta, comecei a palpar o peso daquele fruto, suas mazelas, seus amolecimentos vergonhosamente tingidos de partes duras.

Provei todas as suas partes, avaliei a integridade das suas sementes, tentei adivinhar o sabor da terra onde ela se firmara, enverdecera. Compreendi, no amassado da casca, a contusão pelo armazenamento indevido, a marca que a classificaria como fruto inválido, em qualquer momento da sua cadeia de escoamento.

 Acabada aquela primeira fatia que ainda ecoava dentro de mim, comi a segunda, o mamão inteiro, sentindo, junto com seu sabor insosso, uma espécie de alegria íntima por ter conversado com um fruto ao mesmo tempo tão jovem e tão velho, ter experimentado suas fraquezas, alimentadas e sustentadas por suas poucas forças, um resto de doçura, uma espécie de hibridez.

 Não foi um momento prosaico. Entre polpa e sementes, defronte da minha pia da cozinha, vivemos, eu e o fruto, um processo de troca, de comunicação.

* Joana Belarmino é jornalista, escritora e professora universitária.