saudade1[1]Por Amélio Fernando de Godoy Matos, serratalhadense, médico Endocrinologista, escritor, e Professor de pós-graduação de Endocrinologia da PUC-RJ

Nunca pensei que sentiria falta das peladas noturnas da rua Coronel Cornélio Soares, quando eu era apenas um menino. Nunca pensei que sentiria falta das peladas na beira do rio, dos banhos no rio Pajeú, na pedra do curtume… dos banhos no açude da cachoeira. E mais banhos no açude do Saco… quando eu era apenas um menino.

Nunca pensei que sentiria falta das tardes de domingo, matinês no Cine Art. Das séries cinematográficas de “O Cobra”, “Flash Gordon”, “Capitão Marvel”,  “Rocky Lane”. E dos Gibis… das nossas coleções de revistas em quadrinhos… Ai, ô Silver! Tonto, tonto de saudades, de uma melancolia gostosa a sentir falta de quando eu era apenas um menino.

Nunca pensei que sentiria falta dos ensaios de quadrilha no CIST… quando eu era apenas um menino. Nunca pensei que lembraria da “festa das nações” no mesmo CIST, quando pela primeira vez percebi que havia um mundo com roupas e costumes diferentes. E dos bailes, sob o som saudoso da orquestra de Edésio ao clarinete, Luiz Fogos no piston, Antonio Cabecinha (será o Benedito?) no sax, Genival no trombone de vara, Maninho na bateria. Artistas da minha infância, lembranças de quando eu já era… um pouco mais que um menino.

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Nunca pensei que a minha infância representasse tanto, e que uma cidade marcasse tanto a minha vida. Que carregaria por todos estes anos o sentimento profundo de uma terra, incrustada em mim pelos seus humores, pelos seus rumores, pelos seus aromas, pelas suas personas.

Nunca pensei que sentiria falta da bruma do amanhecer nas manhãs frias do mês de Julho, precedidas, por certo, de um dia ensolarado e quente… quando eu era um pouco mais que um menino.

Nunca pensei que sentiria falta das viagens breves a cidade de Triunfo, onde o frio era a atração, o colégio Stella Maris a emoção da antevisão das garotas uniformizadas a despertar a paixão… quando eu era um pouco mais que um menino.

Nunca pensei que sentiria falta das infinitas voltas ao redor da Praça Agamenon Magalhães, nas noites desertas e calmas dos fins das férias de Julho, quando todos os amigos mais velhos retornavam ao Recife e a cidade quedava quieta e triste… quando eu era um pouco mais que um menino.

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E O GERA DE MANÉ LOURENÇO?

Nunca pensei que sentiria falta das conversas descompromissadas, da banca do Gera de Mané Lourenço, ao meio dia de uma pós manhã, duma pós noitada ressacada; das suas afiadas e irreverentes estocadas… quando eu era um pouco mais que um menino .

Uma vez, Ah, uma vez, Gera de Mané Lourenço, destilando a sua sabedoria ímpar, viu-me de óculos escuros (o primeiro que tive) e perguntou-me sarcástico: “menino, você tá trabalhando em cerca de aveloz?” Ah, Gera, quanta inteligência contida por um copo de cachaça.

Quanto desperdício da inteligência derramada nas agruras do vício. Foi-se jovem, magro, abatido por uma tuberculose que teimou em não reconhecer. É célebre a sua estocada no médico que o atendia no SAMU em Recife…”filho, se você não parar de beber, não te dou mais que 6 meses de vida”. Um ou mais anos após, ele, orgulhoso e impávido, destilava mais uma vez o seu veneno ladinamente. “Amigos, enganei até a morte!” Esse era o Gera. E eu, Nunca pensei  que sentiria falta… quando eu era apenas mais que um menino.

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Nunca pensei  que sentiria falta dos “assustados”, tertúlias inocentes de uma juventude que se entendia “pra frentex”, mas que hoje pareceriam seminaristas nas “ravi parties” regadas a LSD, cocaína e nenhum
Macunaíma. Na casa de Zé Vaz, sempre pronto a receber as hordas daquela juventude transviada, que hoje não passaria de uma corriola de “patricinhas e patricinhos”… quando eu era um pouco mais que um menino.

Ainda mais, nunca pensei que sentiria falta das festas de Setembro, das barracas desconfortáveis e calorentas ao redor da praça, exilando aromas de frango assado, pastéis escorridos… e da zabumba… ah, a zabumba! O som dos pífanos alucinantes, dos tambores ritmados, e nós, boquiabertos, balançávamos as cabeças ao acompanhar o ritmo ou, instintivamente, ao reverenciar aqueles artistas crus, primitivos, desprovidos, mas, acima de tudo músicos… quando eu era apenas mais que um menino.