Publicado às 05h44 desta sexta-feira  (21)

Coluna SAPIÊNCIA com PAULO BEZERRA*

*Mestre em Biodiversidade e Conservação pela UFRPE-UAST/ Bacharel em Ciências Biológicas pela UFRPE-UAST. / Coordenador do Grupo de Estudos em Ecologia e Conservação da Herpetofauna-GEECOH

 

Aoô, Sapiens!

Continuando a nossa prosa, eu trago para vocês em mais uma matéria da coluna Sapiência o feito espetacular da medicina e da biotecnologia que pode mudar os rumos da vida de pacientes com doenças cardíacas e trazer esperança e sobrevida para milhões de pessoas que aguardam ansiosamente nas filas por transplantes de coração mundo à fora.

Caras leitoras e leitores sapientes, imaginem a situação… Ter um coração que não é seu batendo no seu peito, já provoca uma sensação que envolve muitas emoções, concordam? E ter um órgão que não se desenvolveu em outro humano e que pertenceu a outra espécie bombeando o sangue que corre dentro do seu corpo?! Nos primeiros instantes a ideia pode parecer estranha, mas foi o que aconteceu semana passada (10/01), quando cirurgiões do Centro Médico da Universidade de Maryland nos Estados Unidos, anunciaram oficialmente à imprensa que realizaram o primeiro transplante de coração envolvendo um porco geneticamente modificado e que foi recebido pelo americano, David Bennett, de 57 anos.

O paciente sofria de insuficiência cardíaca em estado terminal, estava há mais de um mês internado e muito debilitado para suportar a fila de espera por um transplante de coração humano. Além disso, foi considerado inelegível para receber uma bomba de coração artificial após os cardiologistas avaliarem seus registros médicos. Diante desse cenário de possível sobrevida ou morte iminente, David resolveu aceitar a ultima opção que lhe restava: arriscar um tratamento experimental e receber um coração suíno. A agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (Food and Drug Administrationo), órgão similar à Anvisa, concedeu uma autorização emergencial liberando a cirurgia em 31 de dezembro de 2021. Momentos antes da cirurgia David comentou sobre o que está vivendo.

“Era morrer ou fazer esse transplante. Eu quero viver. Eu sei que é um tiro no escuro, mas é minha última escolha”. Para que esse transplante de coração entre suíno e humano – até então nunca antes realizado na história da medicina – fosse possível, os cirurgiões recorreram aos avanços de uma ciência aplicada, da biologia e da genética, chamada de biotecnologia. A biotecnologia envolve técnicas que se baseiam nas Ciências Biológicas (área do conhecimento que estuda a vida) e utilizam sistemas biológicos, organismos vivos selvagens ou geneticamente modificados, com o intuito de produzir ou fabricar produtos ou processos que atendam uma demanda específica. Como por exemplo, o porco que foi o doador do coração recebido por David, teve segmentos do seu material genético (alguns genes – sequências ordenadas e especificas na molécula de DNA que codificam proteínas e expressam características) modificado.

As cirurgias de transplantes entre doadores e receptores humanos são consideradas procedimentos minuciosos e que demandam inúmeros cuidados. O principal fator de risco observado é a rejeição por parte do individuo receptor ao órgão transplantado. Isso acontece porque o sistema imunológico, que atua defendendo nosso organismo contra agentes infecciosos causadores de doenças pode reconhecer o novo órgão como um corpo estranho. Essa resposta imunológica pode desencadear um alerta e posteriormente emitir o comando para o exercito de células e outras substâncias presentes no nosso organismo que aquele coração é um invasor, que não pertence ao nosso corpo e precisa ser atacado imediatamente. Para evitar que indivíduos transplantados rejeitem o novo órgão, os pacientes costumam fazer uso de substâncias conhecidas como imunossupressores – medicamentos que inibem a ação do nosso sistema de defesa.

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Quando se trata dos xenotransplantes (transplantes de órgãos ou tecidos entre diferentes espécies) o risco de rejeição é ainda maior. O que torna essa intervenção cirúrgica ainda mais arriscada e desafiadora para os cientistas. Um exemplo do grau de complexidade desse tipo de cirurgia aconteceu na década de 1960, quando médicos americanos realizaram transplantes de rins de chimpanzés para pacientes humanos. Infelizmente todos receptores tiveram complicações pós-transplante e quase todos morreram em poucas semanas devido a infecções sistêmicas ou rejeição do órgão. Contudo, um paciente conseguiu sobreviver com um rim de chipanzé por nove meses. Outro caso emblemático e bastante conhecido na medicina dos transplantes ocorreu em 1984. A bebê que ficou conhecida como Baby Fae, nasceu com uma rara anomalia congênita do coração – alteração estruturais ou funcionais detectadas ainda no útero das mães e geralmente que passam de geração para geração – recebeu um transplante de um coração de outro primata, um babuíno. Para a tristeza de todos o procedimento não obteve êxito e a bebê morreu semanas depois da cirurgia.

Nos últimos anos, houve inúmeros avanços nas pesquisas da área de cirurgias de transplantes de órgãos e consequentemente os pesquisadores passaram a focar na utilização de porcos. Os suínos possuem características e fatores que oferecem vantagens em relação aos primatas não humanos, tais como: são animais de fácil manejo de criação, crescem e atingem a maturidade rapidamente, parem muitos filhotes e já são criados como fontes de alimento. Além do mais, alguns órgãos dos porcos são bem similares aos dos humanos. Os cientistas têm utilizado com sucesso válvulas cardíacas, pele de porcos para enxertos e em outubro de 2021 realizaram um transplante de um rim de porco para um paciente que sofreu morte cerebral. O presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), Paulo Rego Fernandes, comentou sobre as razões que levaram os cientistas a escolher suínos para a nova fase de desenvolvimento dos xenotransplantes.

“Ele é um animal fácil de criar, é relativamente barato, por motivos éticos, a sociedade aceita, e ele cresce rápido”. Na tentativa de evitar ao máximo o perigo de rejeição a equipe de cirurgiões recorreu à utilização de um coração de um porco geneticamente modificado e que foi desenvolvido pela empresa americana de biotecnologia Revivicor. É nesse momento que entra em cena uma das técnicas utilizadas pela biotecnologia: a edição genética. O uso dessa técnica permite que trechos específicos do DNA (material genético) sejam eliminados e substituídos por outras novas sequências que formam genes de interesse e expressam determinadas características, realizam funções e “ligam ou desligam” algum botão no nosso corpo. O pesquisador Rafael Furtado, em seu artigo de revisão ‘Edição genética: riscos e benefícios da modificação do DNA humano’, explica o significado do termo.

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“O termo “edição” alude à metáfora da produção de um texto, na qual letras são apagadas para então serem reescritas. Pode-se editar o DNA de toda sorte de seres vivos com finalidades diversas: para tratar doenças, criar alimentos transgênicos, melhorar características humanas não patológicas, entre outras finalidades”. O coração do porco que foi utilizado no transplante de David Bennett teve ao todo dez genes modificados. O coração recebeu seis genes humanos para ludibriar o sistema imunológico do paciente, possibilitar a aceitação e evitar a rejeição. Além disso, teve quatro genes suínos inativados. Três genes que acarretariam na rejeição do órgão do porco por humanos, bem como um gene que induziria um crescimento exacerbado do tecido do coração suíno. Esse conjunto de modificações genéticas foi empregado para tentar melhorar a compatibilidade entre David e o coração do doador.  

Após 8 horas de cirurgia, David foi conectado a uma máquina de circulação extracorpórea, que está substituindo temporariamente as funções de órgãos vitais como o próprio coração. Porém, os cirurgiões afirmaram que o coração transplantado estava funcionando normalmente. O quadro pós-cirúrgico de David é incerto e inspira cuidados. Logo, o paciente permanece sendo monitorado pela equipe médica que teme a ocorrência de infecções ou rejeição do órgão. Apenas nos Estados Unidos um total de 106.657 pessoas estão cadastradas na lista nacional de espera de transplantes, e em média 17 pessoas morrem a cada dia esperando por um órgão, de acordo com os órgãos de saúde do governo americano. Já no Brasil, a demanda é de 1,2 mil transplantes de coração por ano, mas apenas 400 são realizados, um número bem abaixo do necessário para atender os pacientes que aguardam nas filas, segundo Fernando Bacal, diretor da Sociedade Brasileira de Cardiologia. O cirurgião Dr. Bartley P. Griffith, que participou do transplante histórico comentou a situação:

“Simplesmente não há corações humanos de doadores suficientes disponíveis para atender a longa lista de potenciais receptores. Estamos procedendo com cautela, mas também estamos otimistas de que esta cirurgia inédita no mundo fornecerá uma nova opção importante para os pacientes no futuro”. Mesmo representando um extraordinário avanço e uma revolução para a pesquisa cientifica médica que envolve os transplantes entre espécies, o transplante do coração de porco recebido por David Benett está longe de ser considerado uma solução para a medicina. Isso se deve ao fato desse tipo de procedimento experimental e vanguardista ter de enfrentar uma série de desafios técnicos e sobretudo questões éticas.

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Os xenotransplantes provocam muitas discussões, para alguns especialistas são vistos como o futuro dos transplantes, salvando vidas e reduzindo o tempo nas filas de espera por órgãos de origem humana.  Já para o diretor médico da Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos, David Klassen, “eventos como esse podem ser dramatizados pela imprensa, mas é importante manter perspectiva”. Leva muito tempo para amadurecer uma terapia como essa”. Alguns pesquisadores especialistas em ética na medicina se pronunciaram afirmando que se esses procedimentos se tornarem uma opção concreta, só deverão ser realizados se todos outros tipos de intervenções já tiverem sido utilizados.

Os transplantes entre nossa espécie e outros animais estão imersos numa série de desafios, entretanto, algumas questões importantes vem à tona, não apenas sobre a segurança dos receptores, mas também sobre o direito dos animais. Os ativistas que lutam pelo direito dos animais consideram que essa conduta é eticamente condenável. Pelo fato da própria modificação genética dos animais para que algumas características se tornem mais semelhantes as dos humanos, visando impedir as rejeições e tornando-se fontes de suprimento de órgãos. A organização não-governamental PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), se pronunciou e teceu criticas ao transplante de rim suíno realizado em outubro de 2021, bem como no caso do transplante de David. A organização alega que “os animais não são depósitos de ferramentas para serem invadidos, mas seres complexos e inteligentes”.

A cada dia que passa a ciência nos mostra ainda mais a sua capacidade de resolver os problemas da humanidade, proporcionar bem-estar para a sociedade e de nos manter esperançosos diante dos seus avanços tecnológicos. Os caminhos são repletos de desafios mais os resultados evidenciam sempre que investir em ciência, tecnologia e educação propicia às nações que adotam tais medidas… o crescimento, o progresso e o desenvolvimento social diante de um mundo em constante expansão.

Saudações Darwinianas

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Referências

CNN. Cirurgiões americanos realizam com sucesso transplante de coração de porco em homem. https://www.cnnbrasil.com.br/saude/cirurgioes-americanos-realizam-com-sucesso-transplante-de-coracao-de-porco-em-homem/ Acessado em 16 de janeiro de 2022.

SUPER INTERESSANTE. https://super.abril.com.br/sociedade/transplante-de-porco-para-humano-e-um-marco-mas-esta-longe-de-virar-solucao-medica/ Acessado em 16 de janeiro de 2022.

FURTADO, R. N. Fundamentos ontológicos do debate sobre seleção e edição do genoma. Fractal: Revista de Psicologia, v. 32, p. 111-119, 2020.