Direto de João Pessoa, na Paraíba

Quando Jurandir Santos, de 43 anos, entrou no ônibus 5600 da empresa Nacional de transporte público, por volta de 21h de uma sexta-feira, na capital João Pessoa, os passageiros se aglutinaram de repente, num cochicho.

Motivo: o homem agarrava com força a cantora Ana Carolina, que se sentara em seu colo, sorrindo. Estava mais pálida que o normal, a cantora, presa numa moldura que media setenta centímetros de altura por setenta centímetros de largura.

Pôs-se ao lado do cobrador do ônibus para desabafar – que pouco se empolgou com o novo cargo de psicanalista – mesmo assim, Jurandir Santos se sentiu à vontade para revelar um segredo em forma de plano: tentaria entrar no show da cantora sem um tostão no bolso, depois invadiria o camarim para lhe entregar um desenho gigante, bater um papo sobre a vida, tirar algumas fotos e só então sair.

Jurandir desceu da condução apreensivo, olhando para todos os lados, na direção do portão que estampava a palavra “exclusivo”. Chegando lá, rosnou tanto por sensibilidade artística que alguém da organização do evento elevou sua obra ao patamar de bilhete de entrada.

No rastro da fama

Orgulho: Jurandir Santos ao lado da pintura do seu 'mestre'

Daí por diante foi fácil. A presa Ana Carolina estava elegantemente desprevenida. Assim que a viu, Jurandir avançou: “Ana, isso aqui é pra você!”; e presenteou-a com ela mesma, monocromática, na cor preta.

“Como você conseguiu me desenhar tão bonita?”, perguntou a cantora. “A modelo foi quem ajudou”, devolveu o autor, com modéstia. No fim do encontro, que ultrapassou os dez minutos, o desenhista constatou, impávido: “A mulher é gente fina”. Depois ele se afogou no mar de gente, mareado de satisfação.

De muito longe do palco, contemplava a chama que, naquela noite, clareara a sua arte.

Assim que abriu os olhos, na manhã quente do sábado, Jurandir Santos sentiu a estranha necessidade de encontrar inspiração, agora, em algo mais tangível e menos propenso às vicissitudes provocadas por uma agenda lotada de shows.

Jurandir contabiliza: Ana Carolina foi a 34ª artista de sucesso que teve a oportunidade de conhecer através da sua arte. No rol dos rabiscados pelo paraibano, entre os mais famosos, estão os cantores Roberto Carlos, Gilberto Gil, Zé Ramalho, Djavan; as cantoras Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Margareth Menezes, Elba Ramalho, Marina Elali; a dupla Zezé Di Camargo & Luciano; e os atores Thiago Lacerda e Maria Fernanda Cândido.

Desenhar personalidades do meio artístico foi a forma que criou de divulgar seu trabalho, que, antes do costume inventado, amargava o ostracismo.

O transporte coletivo em João Pessoa também acabou se transformando numa mostra itinerante do artista: olha ele aí, equilibrando-se no ônibus, em pé, agora sentado, agarrado a mais uma moldura gigante, de quem será? Que bonito…

Diz que o elogio espontâneo das pessoas aos seus quadros é o que o motiva no exercício diário de carregá-los por onde for, em qualquer ocasião. “Eu me sinto bem. É muito bom para o meu ego.”

Fidelidade artística

Certo dia, em uma das andanças pela capital paraibana, foi interpelado bruscamente; missão: salvar um casamento. O marido, desesperado com a possibilidade do fim do matrimônio, pagou oitocentos reais para que Jurandir reproduzisse no grafite a foto da esposa ressentida, em um quadro de um metro de altura por setenta centímetros de largura.

Em poucos dias, o desenhista telefonou: “A obra está pronta”. Para a alegria do marido adúltero, que ganhou o perdão da mulher traída pelas mãos do mestre do desenho.

Jurandir aprendeu a desenhar assim: “Olhando os erros dos outros”; mas assegura que, na sua formação artística, não dispensou a influência dos grandes mestres.

Bebe na fonte deixada pelo pintor paraibano Pedro Américo, autor da tela “Independência ou Morte”, encomendada por Dom Pedro 2º para retratar o grito dado pelo pai, às margens do córrego Ipiranga, na primeira metade do século XIX.

Em busca de reconhecimento, Jurandir tomou as rédeas do destino em 1987 e galopou até São Paulo. Ali, viu-se encurralado, diante de terreno tão acidentado. “Ou desenhava e passava fome, ou procurava um emprego formal”, recorda. Morou um ano na “terra da garoa”, para retornar a Paraíba.

Desenhando profissionalmente há dez anos, o mestre do lápis de grafite já exportou suas obras para os Estados Unidos, Portugal e Chile. No Brasil, sua arte chegou ao Pará, Ceará, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina.

Rabiscando sonhos

Compartilhar conhecimento. Esse é o lema do Jurandir Santos professor, outra face do artista, que enche de esperanças os corações de mais de vinte alunos dedicados ao aprendizado de como desenhar bem. Ele faz questão de frisar que não ensina, antes compartilha o que sabe e, assim, também aprende.

No terraço de sua casa, em Mangabeira, na periferia de João Pessoa, o artista plástico montou um ateliê que serve de sala de aula. Há quatro anos rabisca de sonhos o dia-a-dia de crianças pobres e gente em geral interessada em arte, como é caso de Airton Luiz, de 38 anos.

O homem sofreu um acidente de moto que comprometeu parte do movimento do braço e da perna esquerda. Os médicos disseram que desenhar ajudaria no tratamento; foi aí que Jurandir rabiscou em sua vida. “Nessa minha luta já passei por cinco professores de desenho, mas só agora estou vendo resultado”, elogiou Airton Luiz.

Segundo o desenhista, hoje, seu maior desafio é dar voz ao silêncio de Clévia, uma jovem aluna que não tem audição. Nesse caso, dar voz significa ajudá-la a se expressar também através da arte, em cores e formas eloquentes.

O professor sorri contente ao perceber que o esforço está dando resultado. “Um dia a mãe dela me disse que Clévia estava contando os dias e as horas para ter aula de novo.”

O ateliê de Jurandir virou referência. Nesse espaço só não cabe o preconceito: já teve aluno analfabeto e outro que possuía título de doutor – em engenharia civil.

Hoje o paraibano sobrevive do seu dom. As aulas lhe rendem, em média, mil reais por mês, além da venda avulsa dos quadros. Com o dinheiro, ajuda os pais, cada qual com 84 anos, e paga a pensão de trezentos reais das duas filhas.

Hiperrealismo

Cultiva o sonho, o desenhista, de publicar um livro com o trabalho de seus alunos; e desenha uma meta artística para si: “Chegar ao hiperrealismo, que é você desenhar uma moto na parede e ver o ‘cabra’ tentando sentar nela pensando que é de verdade”, explica.

Jurandir Santos acredita que possa alcançar a imortalidade através do desenho. Rabiscando com avidez o papel da vida, marca sua história projetando outras. E assim se sente feliz.

Desde que ouviu a frase “quero ser igual ao professor Jurandir” brotar da boca de um aluno, este paraibano “arretado” busca redesenhar, todo santo dia, um quadro difícil de alterar, que é o da precária situação da imensa maioria dos artistas desse nosso Brasil. Mas a gente chega lá!