Até bem pouco tempo, todas as manhãs, podia-se ouvir o som de um grupo de pífano tomando praças e feiras de Serra Talhada. Parecia algo comum. Hoje, a realidade mudou e vários músicos estão perdendo o gosto pelo instrumento por falta de incetivo do poder público. O problema é que os espaços para a cultura popular estão fechados na Capital do Xaxado, e se faz muito pouco para mitigar a gravidade da situação. 

O pífano traduz a genialidade do artista sertanejo. Alguns deles, como Lourival Pereira dos Santos, 65 anos, morador do bairro da Cohab, vivem das recordações da época em que ser pifeiro regava sentimentos de admiração entre as pessoas. 

Mais conhecido como Mestre Louro, ele já viajou espalhando a cultura do pífano por diversas cidades do Nordeste e confessa que o principal inimigo dos tocadores atualmente é o desinteresse do governo em investir na arte. “Hoje o pífano está desvalorizado. Ninguém chama mais a gente para tocar”, desabafa. A última vez que fez um show foi em abril do ano passado, durante um encontro de amigos na zona rural. “Pense numa festa decente”, relembra. 

LEMBRANÇA - Mestre Louro do Pífano sente saudades do tempo em que vivia apenas da música

Ele contabiliza mais de 1000 apresentações, entre batizados, comemorações de aniversário, novenas e projetos realizados, num passado, pela prefeitura. E como faz para matar a saudade, mestre Louro? “Eu toco sozinho, relembrando tudo. Mas até que me revoltei um pouco e encostei o pífano. Tocava, tocava e não via apoio de ninguém. Então ‘gelei’ e fui entristecendo.” 

Lourival dos Santos carrega outra mágoa dentro dos acordes do seu instrumento. Ele sentiu escorrer pelas mãos o sonho de se aposentar como músico. “Houve uma época em que a gente tocava muito e a prefeitura ajudava. Pensei que ia me aposentar assim. Mas isso já faz muito tempo. Hoje, é isso aqui que o senhor está vendo.” Atualmente recebe um salário mínimo da aposentadoria como agricultor. “Seria maravilhoso saber que meu descanso veio com o dinheiro do trabalho que eu sempre gostei de verdade.” 

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Para ajudar nas despesas da casa, todos os dias, ele carrega um carrinho de picolé até a calçada da escola Methódio Godoy, no mesmo bairro onde mora. Chega a vender 50 numa tarde, cada um a R$ 0,50. De repente toca o intervalo e Mestre Louro pede licença da entrevista. “Meu ‘fi’ esse é um momento sagrado, é a hora do recreio”, diz, com voz mansa, erguendo-se da cadeira. 

E segue andando devagar, derramando os pés sobre chinelos de dedo, com uma calça de linho marron e camisa de botão, sob um azul fortemente desbotado. 

O MESTRE DO PÍFANO 

Lourival dos Santos toca há mais de 30 anos. Conta que aprendeu tudo sozinho e seu primeiro pífano foi construído a partir do talo de uma abóbora ainda verde. Foi assim, na teimosia mesmo que conheceu as notas, ao lado do filho mais velho, João Lourival dos Santos, que hoje mora em São Paulo. 

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A primeira música que aprendeu foi o Bendito de Padre Cícero (que ele aproveitou para assobiar durante a entrevista). Lourival tem orgulho de ter repassado seus conhecimentos ao filho mais novo, Cícero dos Santos, de 19 anos. Hoje, por causa do estímulo do pai, o garoto tomou gosto pela música e toca trompete numa banda marcial da cidade. 

DO PÍFANO AO METAL - Cícero dos Santos, 19, ao lado do pai, Mestre Louro. A música corre na veia.

É preciso técnica para fabricar um pífano. Mestre Louro faz isso em casa e leva cerca de 3h. Primeiro deve-se escolher um bom pedaço de cano, depois calcular a circunferência exata dos furos, o comprimento do corpo do pífano e vedar as extremidades com perfeição. Assim, deve-se, incrivelmente, afiná-lo. “Pra isso tem que saber escutar. Tá pensando que só fazer buraco?”, avisa Seu Lourival, ironizando o repórter.  

Na juventude ele percorreu o Sertão com uma banda composta por dois pifeiros, um tocador de tarol (que ele chama tarolzista) e um zabumbeiro. Uma das maiores aventuras que realizava com o grupo de músicos era ir de carona, sem um tostão, tocando dentro de caminhões de romeiros que iam visitar a estátua do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, no Ceará. “Pra quem gostava de tocar direto como eu, era bom demais.” Após três dias de muita música seguiam eles, de volta, no mesmo ritmo dentro dos caminhões, cortando a madrugada na base do pífano. 

O mestre Louro é um dos últimos tocadores do instrumento em Serra Talhada. Casado com Dona Maria Cícera faz 50 anos. Com ela educou sete filhos. Atualmente, um dos seus maiores desejos na vida é ver o poder público investir novamente nos grupos de pífanos da cidade. Se ainda existirem. 

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PÍFANO É “OURO” FORA DE SERRA TALHADA 

Se a cultura do pífano está morrendo em Serra Talhada, ela é tratada a “pão de ló” em Caruaru, onde a”flauta” nordestina tornou-se símbolo de resistência da cultura popular na figura de João do “Pife.” Hoje, a cidade possui vários grupos que recebem apoio do poder público para continuar tocando. O negócio ficou tão sério por lá que, em 2005, uma das bandas de pifano da terra do Mestre Vitalino ganhou o badalado Prêmio TIM de Música, na categoria regional.  

Há discordância entre os estudiosos sobre a origem do instrumento. Acredita-se que tenha chegado ao Brasil no período colonial, com os primeiros cristãos que utilizavam o “pife” para entoar cânticos religiosos. Outra hipótese investiga suas raízes na cultura oriental. Além destas suposições, pesquisadores também afirmam que o intrumento ganhou força no Nordeste durante o domínio holandez (1630/1654). 

Assita à apresentação de João do Pife de Caruaru. 

 

*Fotos: Giovanni Alves Duarte