Do UOL

Com a luxuosa colaboração de Jair Bolsonaro, o bolsonarismo tornou-se um inestimável restaurador da imagem do Supremo Tribunal Federal. Segundo o Datafolha, a maioria dos brasileiros enxerga como risco à democracia as manifestações que pedem o fechamento do Supremo e do Congresso (78%), além da difusão de notícias falsas contra magistrados e políticos (81%).

Significa dizer que: 1) Bolsonaro se ilude ao chamar de “povo brasileiro” os devotos que se aglomeram em seu apoio exibindo faixas que pedem o fechamento da Suprema Corte e do Legislativo; 2) O presidente conspira contra si mesmo ao chamar de “minha imprensa” os apologistas investigados sob a acusação de difundir fake news nas redes sociais.

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Considerando-se que o mesmo Datafolha revela que 78% dos brasileiros apoiam a democracia, Bolsonaro dá as costas para o sentimento nacional ao prestigiar atos antidemocráticos. Simultaneamente, o presidente se arrisca a atribuir um conceito de utilidade pública aos dois inquéritos que cercam o bolsonarismo no Supremo —um aperta o nó no pescoço dos promotores de manifestações insanas; outro ajusta a corda na garganta dos operadores da máquina de moer reputações nas redes sociais.

Ironicamente, a raiva do bolsonarismo tem potencial para imunizar o Supremo contra o vírus da autodesmoralização. No esforço autodestrutivo a que vinha se dedicando, a Suprema Corte produziu uma notável sequência de decisões corrosivas. Por exemplo:

1) O Supremo transferiu a competência para o julgamento dos crimes de corrupção, quando conexos com delitos eleitorais, de uma Justiça Federal crescentemente implacável para uma Justiça Eleitoral cujo desaparelhamento conduz à impunidade.

2) Considerou inconstitucional a condução coercitiva, que vigorava havia quase 80 anos;

3) Transferiu para o Legislativo a palavra final sobre medidas cautelares —afastamento do mandato, por exemplo— impostas a parlamentares pilhados na prática de crimes. Entre eles o tucano Aécio Neves.

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4) Concedeu mais de 50 habeas corpus para abrir as celas de gente graúda. Sobretudo no Rio de Janeiro, um estado devastado pela corrupção.

5) Valeu-se de uma norma não prevista em lei para atrasar o relógio de processos em que réus delatores e delatados juntaram suas alegações finais nos processos simultaneamente. Decidiu-se que os dedurados precisam falar por último.

6) Alterando jurisprudência que havia confirmado em quatro julgamentos, o Supremo revogou a regra que permitia a prisão de larápios condenados na primeira e na segunda instância. Abriu dezenas de celas, entre elas a de Lula. E restabeleceu o cenário em que a concretização da justiça é um momento infinito, que os advogados caros e a prescrição impedem de chegar.

7) Em decisão individual, tomada num plantão do recesso do Judiciário, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, concedeu liminar a Flávio Bolsonaro suspendendo o inquérito da rachadinha. Estendeu o mimo da procrastinação a todos os processos fornidos com dados do Coaf. O refresco da procrastinação durou seis meses, até ser derrubada no plenário —com o voto do próprio Toffoli.

8) Noutra decisão solitária, Toffoli abriu um inquérito ilegal, sem a participação da Procuradoria, a pretexto de investigar ataques e ameaças à Corte, aos magistrados e aos seus familiares. Em verdade, o ministro reagia a uma conjuntura que incluía uma investigação de auditores do fisco contra sua mulher.

Num cenário assim, tão desolador, parecia impossível para o Supremo recuperar a simpatia da sociedade. A sensação era de cansaço. Aquilo que alguns ministros do Supremo ainda ousavam chamar de reputação constituía, na verdade, a soma dos palavrões que seus veredictos inspiraram nas esquinas. De repente, Bolsonaro e o bolsonarismo presentearam a Corte com o papel de vítima. Uma evidência de que a esperança do presidente é a última que mata.