Do G1 PE

Um ano após morte, mãe mantém casa intacta“A saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto de um filho que já morreu”. Os versos da canção “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque, traduzem o sentimento diário de Mirtes Renata Santana de Souza, 34, mãe do menino Miguel Otávio de Santana, de 5 anos. Há exatamente um ano, no dia 2 de junho de 2020, o garoto morreu após cair de um prédio de luxo, no Recife.

Mirtes mantém a casa intacta, como se o filho fosse voltar de um passeio a qualquer momento. “Queria que isso fosse um pesadelo e que eu acordasse e visse o meu filho junto comigo”, diz, emocionada.

Enquanto tenta reconstruir a vida, Mirtes diz que o único desfecho possível para o caso é a condenação da sua ex-patroa, Sarí Corte Real, por abandono de incapaz com resultado morte.

No dia em que morreu, Miguel estava sob os cuidados de ex-primeira-dama de Tamandaré, no Litoral Sul. A mãe do garoto, que era doméstica na casa dela, tinha saído para passear com a cadela dos ex-patrões.

Que a saudade é o pior tormento

O quarto que Mirtes dividia com o filho continua do mesmo jeito. A cama dela de um lado e a dele do outro, coberta por um lençol infantil e dois bichos de pelúcia. A única novidade, em uma cadeira no canto, são livros de direito, curso que ela começou em fevereiro deste ano.

“Foi uma missão que o meu filho me deu. E escolhi para entender melhor o processo do meu filho. E lá na frente poder ajudar, como estão me ajudando agora. Principalmente outras mães negras, periféricas, que não têm condições de pagar advogados”, revela.

Mirtes marcou na pele com uma tatuagem o dia de maior alegria de sua vida, o parto de Miguel, e aquele de maior tristeza, o de sua partida, além do nome do filho e da figura de um anjo.

“É um ano de dor, sem o meu filho. A cada dia vai aumentando a saudade dele”, afirma.
Oh, metade arrancada de mim

Sentada na cama que era de Miguel, enquanto acaricia uma foto, Mirtes revela que não consegue se desfazer das coisas do filho.

Enquanto fala sobre ele ainda no presente, os brinquedos na sala reforçam o quanto presença e ausência se misturam na casa que Mirtes, hoje, divide apenas com a mãe, Marta Santana, 61.

“Mato a saudade olhando as fotos dele, os vídeos, escutando a vozinha dele. Sinto uma falta terrível. Estou na mesma casa, ainda, com as coisinhas dele, porque não consigo me desfazer. E agora, tenho que replanejar a minha vida sem o meu neguinho junto. É bem difícil, mas vou conseguir”, desabafa.

As lágrimas são muitas, mas chegam alguns sorrisos, quando Mirtes lembra do quanto Miguel se divertia na piscina, do dia em que arranhou a geladeira com a bicicleta ou da forma como o filho enchia a casa de alegria e vitalidade. Em meio a lembranças boas e dolorosas, ela faz o que considera ser preciso para que seja feita justiça.

“Não consigo dormir direito, porque fico pensando no que vou fazer para o caso do meu filho não cair no esquecimento. E só vai amenizar, aliviar, quando realmente a justiça for feita e eu puder olhar para o céu e dizer ‘filho, a justiça foi cumprida'”, disse.

Demora no andamento do processo

Um ano após morte, mãe mantém casa intactaAtualmente, há três processos na Justiça a respeito do caso. O advogado Rodrigo Almendra, que representa Mirtes na esfera criminal, critica a demora no andamento no processo em que Sarí Corte Real é ré. O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) denunciou a ex-primeira-dama de Tamandaré por abandono de incapaz que resultou em morte.

De acordo com o criminalista, o processo travou no depoimento de duas testemunhas de defesa de Sarí, que são de Tamandaré e de Tracunhaém, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Foi solicitado o cancelamento do depoimento de uma dessas testemunhas, por terem sido feitos sem a presença da assistência de acusação.

Na terça-feira (1º), o MPPE emitiu um parecer favorável ao pedido de anulação, que será analisado pela 1ª Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes da Capital.

“O processo está na fase de instrução e ouvida das testemunhas. Foram ouvidas as de acusação e faltam, ainda, duas de defesa e a própria ré. Um ano para ouvir duas testemunhas é bem absurdo. Porque basicamente o processo travou”, critica.

Para o advogado, a demora na conclusão dos depoimentos gera uma sensação de impunidade. “Gera descrédito no Judiciário, uma sensação de que Sarí se privilegia de um sistema ruim. Tenho vários motivos para achar que a demora atrapalha ao criar uma narrativa pró-impunidade”, diz.

Almendra diz que não há dúvidas de que Miguel foi abandonado por Sarí Corte Real. “Ela deixa Miguel no elevador, aperta um botão e não sabe se Miguel subiu, se desceu. Não tem o cuidado de interfonar, avisar para a mãe. Ela volta para fazer as unhas, que não terminou por causa da morte de Miguel, e volta no dia seguinte para terminar”, destaca.

Para defesa, Sarí é alvo de ‘condenação antecipada’