Publicado às 05h40 desta quinta-feira (27)
Por Flaviano Roque, escritor serra-talhadense
Uma finura dessas últimas semanas é um fato paradoxal: ser um cumpridor da lei virou uma “atitude reacionária”. Sim, essa frase per si já é um absurdo, infelizmente real, e não é só a questão do “jeitinho brasileiro”, trata-se de uma capacidade brasileira de desdizer o óbvio, fazendo as coisas funcionarem ao avesso. E vejam só quão pífio faz-se o tom supostamente liberal dessa afirmação — reacionário cumpridor da lei —, considerando o ato de abaixar a cabeça para as honras e mandos do Estado ser, no mesmo giro de contrariedade, um ato de sagacidade implacável, quando os reacionários, ao menos os verdadeiros, sempre estiveram às margens dos mandos do governo.
Vou me fazer entender com exemplos… Comecemos pelo trânsito de Serra Talhada, falo isso porque ontem passei pelo semáforo do cruzamento entre a Rua Manoel Pereira Lins com a Jacinto Alves de Carvalho, bem próximo do HOSPAM, e notei um fato curioso; se você detiver o seu veículo a fim de esperar o sinal verde, é provável que, sem consciência, esteja propondo um ato libertino e de reação à normalidade do STTRANS. Quiçá, indo mais longe na construção desse tipo, ali no cruzamento, os demais condutores da via conseguem fazer o motorista regular sentir vergonha de agir respeitando as cores de “pare e siga”. E ainda há aqueles irritados por que o condutor à frente parou no sinal vermelho, dirão sem pestanejar: “Um folgado, não está vendo que está livre”. Eu, na minha paciência habitual, sempre comento com minha esposa: “São todos daltônicos, não lidam muito bem com cores, especialmente com o vermelho”, e sorrimos para descontrair.
Discromatopsia ou não, deve-se reiterar o velho ditado — “Em terra de cego quem tem um olho não é rei é caolho”. Teste ficar parado neste sinal vermelho, ou em outros pela cidade, meus amigos, duvido de não lhe acusarem de estar querendo reinventar a roda. Porque bom mesmo (normais) são aqueles que cruzam a linha de pedestres, olham para um e outro lado e seguem seu bonde, arrancando, no rubor do sinal, com a mesma velocidade em que as amarelinhas colocam papéis de tolerância nos veículos situados na zona azul (e elas são rápidas); assim os anti-reacionários vão ganhando tempo, saindo na frente dos outros. Parar e esperar é coisa de careta, coisa de cumpridor de obrigações. E veja a grande revelação: como, em algumas situações, os chamados cumpridores da lei são minoria (não exatamente em número), são agora taxados de hostis à vida comum.
Pois bem, o problema não é os conservadores serem maioria, a bem da verdade, nunca serão — se eles não entendem isso, devem voltar a tabuada — o problema é que agem com estupefata grandeza, fazem mais barulho do que nós meros “cumpridores da lei”. Nós que separamos o lixo e colocamos avisos nas sacolas para que o gari não se corte com em eventual vidro; nós que cedemos lugar na fila para um ancião ou mesmo tentamos ajudá-lo com o caixa eletrônico; nós que damos preferência às bicicletas e aos pedestres quando estamos em um automóvel; nós que respeitamos o limite máximo de atendimento em estabelecimentos, por conta do covid-19… Nós, apesar de sermos uma legião, quando fazemos algo grande, não esperamos um tapinha nas costas benfazejo.
Mas esse exemplo não parece suficiente, talvez não tenha ficado clara a ideia de que o ato ordeiro de cumprir as leis virou uma atitude reacionária. Vamos a outro. O caso da menina do Recife que foi estuprada pelo tio, por certo todos assistiram ao noticiário. Vejam a nota do MPPE: “foram recepcionadas várias manifestações relativas ao caso do aborto legal realizado no Recife”. Algumas manifestações tiveram base na reflexão religiosa, outros acompanharam o caso via redes sociais, em grande parte, sem bases de empatia e amor ao próximo. Quanto à manifestação religiosa, tenho um filtro para compreendê-la, não trato-a como injusta ou leviana, os dogmas e mistérios religiosos ainda têm grande relevância no espírito humano, mas apoio a liberdade de expressão religiosa, tão somente, até o ponto em que ela não se transforme em propagação de ódio e iniquidade.
Eu sequer precisaria explicar, o termo aborto legal já é extremamente claro. É o caso, novamente, de se cumprir a Lei. Contudo, é forçoso reprisar, por mais polêmico que seja: quando uma criança é violentada, nestas circunstâncias, é aplicável de plano o art. 128, inciso I do Código Penal. O aborto é crime no Brasil, porém, ainda bem que “reacionários antigos”, que de fato se contrapunham às Instituições Seculares, observaram questões elementares acerca do abuso sexual e da laicidade do Estado.
Queira o leitor mais conservador ou não, nem todo aborto é crime, em situação de estupro ou para salvar a vida da gestante é permitido ao médico realizar o procedimento abortivo. Inclusive Serra talhada tem hospital que faz esse procedimento, não estamos isolados do mundo, a título de utilidade pública podem consultar o site: https://mapaabortolegal.org/tag/serra-talhada/. Supor, sem razão, tudo isso, perpassa mais do interlocutor do que das instituições em si, na ânsia atual de contrariedade a tudo, querem fazer do Direito objeto do passado, vendável em templo religioso. A grande massa do instagram não parou para pensar sequer como foi realizada a publicidade (extremamente ilegal) de divulgação de dados de uma criança, numa situação na qual o que mais a família desejaria, assim como qualquer outra, seria privacidade como direito fundamental. E se qualquer ignorância ainda cega a compreensão da severidade desses problemas, atrelado ao fato de que a maioria dos opinadores não têm experiência em obstetrícia, lembre apenas o quanto é razoável calar quando não sabemos o que dizer.
Os novos anti-reacionários entendem pouco de trânsito e de abortos, em ambos os casos optam pela não aplicação da lei e pela visão patriarcal de mundo, não sabem onde parar e onde seguir; e, na pior das hipóteses, constrangem quem decidiu simplesmente fazer o devido. Eu torço que melhoremos, meus amigos, no trânsito e na vida.
11 comentários em Como atua o legalismo reacionário em ST?