MEMÓRIA: Dos tempos dos meus avós, da luz do candeeiro e as boas lembranças da infânciaPor Magda Carvalho, professora de Serra Talhada

Memórias da Infância Três Passagens, zona rural de Serra Talhada, é o nome daquele lugar. Terras que não pertenciam exclusivamente a um proprietário, mas a várias famílias. Dentre elas, uma das ramificações da família Pereira, especificamente a Pereira Brasil. Era lá que passávamos feriados e férias escolares.

A aventura era iniciada a partir do momento em que tínhamos que pegar os “carros de feira” lá na Rua 13 de Maio. A viagem, em estrada de terra, seguia por mais de duas horas. Era cansativa, mas esquecíamos do sol das duas da tarde em nossa cabeça quando pensávamos na recompensa a ser recebida: momentos de alegria, de sorrisos, de brincadeiras, momentos em família. Quando o caminhão se aproximava, as pessoas do lugar já sabiam que a casa de “Seu Chico Pereira” viveria dias de festa. E assim o carro passava… Em determinados pontos da viagem, a construção das humildes casas de taipa lembrava ruas. Ruas em que as pessoas saiam de suas casas para nos ver chegar.

Quão grande era a nossa ansiedade depois de passarmos da casa dos “Marçá”, pois sabíamos que depois de uma ladeira estaria uma das poucas casas de alvenaria, onde um simpático senhor costumava descansar depois da labuta com a roça e a criação. Aquele era seu momento de contemplação à vida. Com o olhar disperso para o horizonte, tragava tranquilamente seu cigarro de fumo. Quando de súbito era interrompido pelos nossos gritos de “vovozinho”. Ele calmamente levantava e vinha nos receber, aproximadamente vinte netos, ele abençoava, pacientemente, cada um de nós. Para então, depois, abençoar e abraçar suas nove filhas e abraçar alguns de seus genros.

Nossa avó, Dona Anaíza, como uma excelente anfitriã, preparava fartamente a mesa para a nossa chegada. Tinha de um tudo: angu feito de milho moído, leite de gado, galinha de capoeira, bode guisado, arroz vermelho, inhame, macaxeira, batata doce, bolo fofo, umbuzada e café. Ah… o café, tão cheiroso quanto saboroso. E para aqueles que apreciavam uma boa janta, tinha feijão verde. É, feijão verde cozido no fogão à lenha. Satisfeitos com o banquete, todos tomavam seus lugares: as mulheres da casa iam, à luz de candeeiro, arrumar a cozinha, os homens iam palestrar na calçada, quanto a nós, íamos para a varanda apresentar o show de calouros para o nosso único espectador, que numa cadeira de balanço observava seus netos um a um.

Acendíamos o lampião movido a gás e começávamos. Eram piadas, mágicas, dança e música. Muita música. Cantávamos músicas que iam de José Ribeiro a Luiz Caldas. E vovozinho, tranquilamente assistia às nossas travessuras. Vez ou outra nossa avó reclamava, dizendo para pararmos com aquele “labacé” e nosso avô apenas sorria, numa indicação de que o espetáculo deveria continuar. Arrumada a cozinha, todos se dirigiam à calçada, lá a prosa era boa, principalmente as estórias de “malassombro”. Ouvíamos atentamente sobre o aparecimento da Mulher de Branco, das almas que passavam a noite batendo nas panelas e pisando milho no pilão ou dos guarás que apareciam no terreiro da casa. Apesar do medo, estávamos totalmente envoltos naquelas narrativas até sermos dominados pelo sono.

E assim, éramos levados até nossas redes. Redes que se cruzavam numa mistura de cores na sala da varanda e na sala do meio. Mal o dia clareava e nosso avô seguia com o gado para a manga. Os netos mais ousados colocavam seus chapéus de couro e seguiam-no caatinga à dentro. Em casa, ficavam as mulheres e as meninas. De longe era possível ouvir o rádio ABC, vozes, o bater das panelas, o estalar da madeira queimando no fogão. E risos, risos daquelas que observava quem primeiro pegaria, no chiqueiro, as galinhas do almoço.

No terreiro ouviam-se vozes infantis. Meninas que traquinavam, corriam, andavam de bicicleta, andavam a cavalo, subiam em árvores e faziam bonecas de sabugo milho. Para isso, era necessário usarmos faca, e quando alguma se acidentava, nossa avó, com a sabedoria de quem criara onze filhos, vinha com pó de café e seu rosário de contas, pois se o café não estancasse o sangue, a reza asseguraria tal efeito. Quando se aproximava o pôr do sol, de longe avistávamos o gado que compassadamente se dirigia para o curral. Os chocalhos eram os instrumentos que acompanhavam o aboio: “êêêêêê boi! Chegue! Chegue! Êêêêêê gado manso. Ôôôôôa…” E assim, o dia, como num passe de mágica, chegava ao fim. E quando percebíamos as férias já tinham acabado e era hora de voltar para a cidade.

Hoje, a casa continua lá, resistindo ao tempo. Ainda é possível, quando se passa da casa dos “Marçá”, avistar de longe o banco de baraúna que servira como ponto de descanso aos pretendes a genro de Seu Chico. No entanto, não mais é possível ouvir as vozes que enchiam de alegria aquela casa. A radiola não mais toca Luiz Gonzaga, nem Assisão, não se escuta o arrastar das chinelas que forrozavam, não se escuta os risos das crianças, nem as prosas na calçada. Como também, não mais se escuta os chocalhos do gado, nem o aboio do vaqueiro, pois a vida e o tempo encarregaram-se das mudanças: a energia elétrica chegou, as crianças cresceram, o gado foi vendido e a voz do vaqueiro foi silenciada.

Naquela casa, ficaram apenas as recordações, o banco e as indumentárias do vaqueiro. A sela, o gibão e o chapéu de couro ainda estão dispostos como o vaqueiro os deixou quando partiu. Quem sabe, um dia, quando ele voltar, poderá usá-los novamente. E as crianças daquele tempo, agora adultas, poderão abraçá-lo como antigamente.