'Musicistas não veem suas histórias contadas'Da Folha de PE

A esta altura, na plenitude de um Século XXI, apontar questões de gênero como limitadoras de carreiras deveria ser algo impensável, do tipo desnecessário mesmo. Mas ainda são muitas as realidades que pairam sobre mulheres que, tanto quanto os homens, podem ser o que elas quiserem, inclusive musicistas eruditas e à frente de grandes orquestras, como regentes, caso a linha do tempo da história do machismo tivesse sido quebrada. Mas não foi.

E, embora haja conquistas nesta seara que precisam (merecem) ser exaltadas, faz-se essencial, também, trazer à tona a desproporção que insiste em compor com mulheres a música orquestral palcos afora. “Fui regida apenas uma vez por mulher, em todos os festivais de que já participei. A área da composição e da regência é difícil para mulheres, que em sua maioria não são encorajadas a seguirem adiante”, relata Jade Martins, violonista da Orquestra de Câmara de Pernambuco e professora de música, que completou: “Em uma das orquestras que toquei, tinha sessenta homens e dez mulheres”.

O notório desequilíbrio de gêneros na trajetória da violonista, principalmente em se tratando das maestrinas – e talvez, literalmente, seja possível contar nos dedos o número de musicistas que enveredaram com a batuta em mãos – pode ser “justificado” pela própria história da música erudita, na exaltação de compositores e regentes homens, silenciando a aptidão de mulheres que só passaram a ser (um pouco mais) ouvidas e selecionadas como instrumentistas quando das chamadas ‘audições às cegas’, uma espécie de seleção feita por trás das cortinas que, pelo menos inicialmente, não revelavam quem estava por trás delas.

“A vida de um músico profissional exige muito tempo de dedicação aos estudos e à carreira. Mulheres que resolvem abraçar essa profissão muitas vezes acabam tendo que se desdobrar no acúmulo de suas funções de profissional, mãe, esposa, dona de casa e abdicar disso para participar dos concertos, de turnês e apresentações. Isso afasta mulheres de seus objetivos musicais”, comentou Mônica Muniz, professora de regência e de disciplinas como Música de Câmara e Teoria no Conservatório Pernambucano de Música (CPM). Ela também comanda o Coro de Câmara do Conservatório e da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), além do coro Revívere e como cantora lírica, participa da Academia de Ópera e repertório da UFPE.

Um viés que também poderia “justificar”, portanto, os afazeres domésticos, que cabem ‘t-ã-o s-o-m-e-n-t-e’ a um dos lados, um fator histórico-social que fomenta a ausência de mulheres no mercado da música erudita. “Sou mulher, negra e musicista. Em minha fase de formação tive uma mãe presente e uma avó que me acompanhava, ambas feministas e negras. Ensino violino há pelo menos nove anos, integro a orquestra e exerço minha liderança como professora. Já sofri preconceitos e me policio até nas vestimentas. O caminho é longo para se chegar, o ambiente é difícil para mulheres que em suas maternidades, por exemplo, precisam se afastar da música, mas os homens que se tornam pais, não abdicam da profissão. Mulheres não veem suas histórias contadas em livros”, enaltece Jade.

De fato. Nem Maria Anna Mozart (1751-1829), teve sua carreira evidenciada pela história, um outro extremo se comparada com o seu irmão famoso, o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart. Clara Schumann (1819-1896), Fanny Mendelssohn (1805-1847) e Ethel Smyth (1858-1944) também são exemplos de mulheres compositoras e silenciadas pelas memórias musicais.

“Ô abre alas que eu quero passar”
Numa interpretação livre, cantarolar os versos iniciais do que é considerada a primeira marchinha de Carnaval que se tem notícia, é bradar por autonomia e liberdades, de expressão musical inclusive. “Ô Abre Alas” (1899), composta na época para um ‘cordão carnavalesco’, é reproduzida até os dias atuais em festas momescas País afora e traz a assinatura da pianista e primeira mulher a reger uma orquestra, Chiquinha Gonzaga (1847-1935).

Uma transgressora, repudiada por ter levado adiante a sua aptidão com a música. “São raríssimas as alunas que desejam dedicar-se à regência instrumental, o que é uma pena. O CPM até incentiva a regência em grupos instrumentais, inclusive no recital de formatura há exigência de apresentação de peças, mas mesmo ao passar pela experiência a maioria opta por seguir o trabalho apenas com coros”, admite a professora Mônica.

Desde 2012 a americana Marin Alsop está à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), fundada na década de 1950 e umas das mais tradicionais da música clássica. A partir de 2020 a batuta da Osesp voltará para as mãos de um homem, o maestro suíço Thierry Fischer a assumirá até 2024 e a maestrina passará a ser “regente de honra”. Ela detém outros pioneirismos: assim como no Brasil, em Viena, ela foi a primeira mulher a assumir a Orquestra Sinfônica da Rádio de Viena (ORF) e seguiu com o feito vanguardista no comando da Sinfônica de Baltimore (EUA).

Marin Alsop é outra violadora de regras e integra o rol de exceções de mulheres que lideram e desafiam um mercado marcado pelo machismo. “Há uma preferência das mulheres por instrumentos considerados mais femininos, como a flauta, o piano e o violino, em detrimento a outros como o trombone e a tuba, tocados em boa parte das vezes por homens. E no campo da regência orquestral o desafio das maestrinas é muito maior, porque há o estigma de que mulheres não têm pulso firme suficiente para conduzir grupos instrumentais, além do mito de que o bom maestro tem que ser carrasco, linha dura e aguentar fortes pressões, estrutura emocional que as mulheres não teriam o suficiente para esse tipo de trabalho”, complementa Mônica que reconhece que, pelo menos, há um bom número de mulheres maestrinas de corais. “E só aumenta, o que não deixa de ser uma boa notícia”, considera. Ou uma via de escape, diria esta que subscreve essas linhas.

“Mulher tem que pagar um preço no âmbito social, quando é assertiva e bem-sucedida”
A portuguesa Priscila Bomfim é maestrina assistente da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Pianista, foi na regência que ela se especializou academicamente e em sua trajetória participou de masterclasses com maestros no Brasil e no exterior, o que ela considera essencial para seu processo de aprendizado. Para ela, estar no comando da batuta da Sinfônica “é um desafio muito grande e honroso” ao mesmo tempo em que considera ainda intrigante a carreira de regente para mulheres.

Gestual feminino x gestual masculino
“Muitas vezes me coloco na posição dos músicos de orquestra que tocaram por anos a fio tendo maestros à sua frente. Talvez eu tivesse a mesma sensação, de lidar com algo novo. O gestual feminino tem formas e significados diferentes do gestual masculino. Por isso é tão intrigante ainda, a carreira de regência orquestral para mulheres. Diria que estamos no processo de descobertas desse relacionamento, entre maestrinas e orquestras”.

Machismo estrutural?
“Acabo de ler um artigo recente de Ellen Mcsweeney, ressaltando que a mulher tem que pagar um preço no âmbito social, quando é assertiva e bem-sucedida. A pesquisa citada no artigo demonstra que “se um homem tem uma carreira próspera e bem-sucedida, seus colegas o acharão simpático e digno do êxito; se uma mulher tiver o mesmo tipo de carreira, seus colegas a acharão menos simpática e popular”. Esse tipo de análise é interessante”.

Preconceitos
“Hoje ocupo a função de maestrina assistente da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. É um desafio muito grande e honroso. Creio que cabe às instituições e suas direções artísticas abrirem espaço para o trabalho das mulheres regentes de orquestra. Sou grata à direção artística do Theatro Municipal, bem como à direção artística da OSB, pela oportunidade de fazer música com músicos de tão grande experiência e qualidade como os dessas orquestras”.

Realidade no Brasil e mundo afora
“Tenho acompanhado movimentos no sentido de abrir espaço não só para discussão do tema, como também para criação de oportunidades de trabalho e, principalmente, maior visibilidade para mulheres regentes. Iniciativas que têm acontecido fora do Brasil, em orquestras e instituições de grande porte, tanto na Europa quanto Estados Unidos. Esperamos que tenham um reflexo positivo e duradouro na nossa cultura musical”.