Ataques às escolas mostram que falimos como sociedade

Publicado às 05h56 deste sábado (15)

Por Diego Kehrle, diretor pedagógico da Escola Francisco Mendes

Quando governantes, secretarias, gestores, atendendo ao pedido de muitas famílias e de parte da sociedade, se prestam a revistar seus estudantes nas portas das escolas, o fazem porque não os conhecem, não sabem quem são, o que pensam ou sentem. Pior: não estão interessados em saber. Quando a escola não conhece os alunos que têm, ela já não pode mais ser considerada um local de formação humana, tornou-se um depósito de crianças e jovens, um espaço em que já não é possível construir qualquer laço ou vínculo afetivo, porque no fundo não importa quem estas pessoas são ou o que podem se tornar. Com isto, ao tratarmos as gerações futuras como potenciais criminosos durante seu processo de formação, assinamos o atestado de completa falência enquanto sociedade.

Ao implantarmos a desconfiança mútua através de detectores de metal, identificadores faciais e seguranças armados no ambiente escolar, tratando nossos estudantes como potenciais criminosos, conseguimos normalizar a inversão dos valores que deveriam orientar os espaços de formação educacional. Em nome do imediatismo estamos empenhados em sacrificar a única instituição que deveria se ocupar de humanizar aqueles que chegam ao mundo. Em nome do medo ignoramos completamente os efeitos deformativos destas ações sobre o caráter de jovens em processo de aprendizagem. Desse modo, nos agarramos sem pensar a uma visão individualista que considera que qualquer um é um inimigo em potencial. Estas atitudes expressam os valores de uma sociedade doente, falida moralmente e incapaz de pensar de forma ética.

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Em nenhum momento foi aventada a possibilidade da criação de rodas de conversas nas escolas, para que os estudantes pudessem falar e ser ouvidos, pudessem desabafar e encontrar saídas para seus conflitos. Ninguém pensou sobre a possibilidade das escolas realizarem Assembleias, para que todos que dali fazem parte possam se encontrar e discutir aquilo que incomoda, aquilo que pode ser melhorado, construindo assim um senso de comunidade. Nem sequer foi cogitada a tomada de ações pontuais, como a identificação de estudantes fragilizados para que tivessem acesso a acompanhamento psicológico e para que as famílias fossem orientadas sobre os perigos do acesso a redes sociais sem supervisão. Todas as falas de governantes e secretários de educação se pautaram por uma abordagem centrada apenas no estabelecimento de uma falsa segurança através da imposição do medo generalizado e da vigilância constrangedora por meio de propostas que querem aproximar – ainda mais – as escolas dos presídios.

Não é à toa que jovens tem se armado para atacar escolas. Em muitas destas, os alunos sofrem durante anos sem serem percebidos, são considerados apenas como nomes na lista de chamada ou como uma média em um boletim. Ignorados pela instituição que deveria cuidar de sua humanização e abandonados às redes sociais, a juventude mergulha no ódio, no racismo, na homofobia e em todo tipo de preconceito que termina por se misturar ao culto às armas. Que foi, inclusive, uma das principais políticas do governo anterior, se tornando assim um dos meios mais utilizados para a cooptação dos jovens aos ideais de extrema direita.

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A escola se tornou parte de um sistema que desumaniza alunos e professores, não há culpa, principalmente quando não sabemos a razão das coisas terem chegado a este ponto. No entanto, a partir do momento que passamos a saber, é preciso admitir que aquilo que construímos e de que fazemos parte deu errado. O que há mesmo é uma sociedade falida e cínica. Nós, adultos, precisamos assumir que falhamos, que perdemos o rumo e chegamos ao fundo do poço. Precisamos refundar aquilo que chamamos de escola, é urgente tomar uma decisão ética para que sejamos capazes de repensar completamente as nossas relações familiares. Só podemos fazer isso se pararmos para repensar os nossos valores, aquilo que está por trás das nossas ações.

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A escola não pode mais ser um depósito de crianças e jovens, pois educação não é cuspir conteúdos em aulas de 50 minutos e aplicar provas que só testam a memorização de curto prazo dos estudantes. As secretarias e governos não podem mais tratar os professores como batedores de metas, chantageando escolas para que recebam bonificações em troca do aumento da média no IDEB. A família não pode terceirizar a formação dos seus filhos para as telas e redes sociais. Tudo isso se une como causa da desumanização e da consequente violência produzida na repetição cotidiana nas escolas e nos lares.

Querer individualizar o problema, achando que estes ataques são uma questão simples e pontual, é não admitir aquilo que está estampado nas nossas caras: fazemos parte de uma sociedade disfuncional que normalizou a violência, que hoje é incentivada pelo modo de funcionamento de todo o sistema do qual fazemos parte e que agora chegou ao seu limite. Não se apaga fogo com gasolina, não se acaba com a violência por meio de símbolos que remetem à própria violência. É hora de agir, mas o caminho mais fácil só irá gerar mais violência.