Do Isto É

 

Quando recepcionou solenemente o coração de Dom Pedro I no Planalto na última terça-feira, o presidente deu uma de suas últimas cartadas para se manter no poder. A apropriação das comemorações do Bicentenário para alinhar simbolicamente seu projeto de poder à celebração da Independência é uma das últimas oportunidades que terá para reverter o cenário desfavorável nas pesquisas eleitorais. Bolsonaro dedicou à cerimônia a pompa dedicada a chefes de Estado. A relíquia foi transportada ao Palácio do Planalto pelo Rolls Royce da Presidência, enquanto o capitão e a primeira-dama Michelle aguardavam no alto da rampa. Tratou-se de uma verdadeira festa cívica, convertida em operação eleitoral: foi ampliado o contingente dos Dragões da Independência, canhões soltaram 21 tiros e a Esquadrilha da Fumaça se exibiu duas vezes.

Alexandre de Moraes manteve a promessa de rigor e mandou a PF apurar mensagens de apoiadores do presidente (Crédito:Divulgação/STF)

A ideia de trazer o coração do primeiro imperador do País foi da médica bolsonarista Nise Yamaguchi, investigada na CPI da Covid. Além de emprestar gravidade histórica às festividades, permitiria associar no imaginário popular o presidente a Dom Pedro I. Embora célere, o discurso de Bolsonaro evidenciou a proposta: “Dois países, unidos pela história, ligados pelo coração. Duzentos anos de independência. Pela frente, uma eternidade em liberdade”. E emendou com o lema integralista, de inspiração fascista, que também foi usado pela ditadura salazarista em Portugal: “Deus, pátria, família!”. Depois da solenidade, o órgão foi transportado para o Palácio do Itamaraty, onde estava desde a manhã de segunda-feira, depois de ser recebido com honrarias pelo embaixador de Portugal no Brasil, Luiz Felipe Melo.

MITOLOGIA Bolsonaro tenta aparecer como herói reproduzindo imagens icônicas de Dom Pedro I. Acima, ele inaugura obra em Uberlândia (MG) (Crédito:Alan Santos)

Segundo aliados de Bolsonaro, o evento impulsiona a paixão nacional antes do Sete de Setembro, momento em que o chefe do Executivo pretende reunir seus apoiadores e, tudo indica, voltar a questionar ilegalmente o processo eleitoral. O Bicentenário ocorre no momento crucial da corrida eleitoral. Até a última segunda-feira, aliados estavam certos de que haviam conseguido convencer o presidente a conter seus ataques nos discursos que deve fazer no Sete de Setembro. Diziam que, apesar da contundência do discurso de Alexandre de Moraes na posse como presidente do TSE, o ministro e o presidente tinham sinalizado uma trégua. O armistício estaria comprovado pela redução dos ataques do capitão às urnas e pela disposição de Moraes em atender, em um prazo curto, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira (o que de fato ocorreu), que tenta questionar a integridade das urnas por pressão de Bolsonaro.

PATRIOTA Luciano Hang é um dos oito empresários que o TSE mandou investigar. Conhecido por usar as cores nacionais, ele já constava de inquérito aberto no STF (Crédito:Divulgação)
NA MIRA DA PF Dono do Barra World Shopping, José Koury é um dos investigados que trocaram mensagens no WhatsApp (Crédito:Divulgação)

Empresários e o golpe

O clima, porém, azedou na terça-feira, quando Moraes usou o inquérito das milícias digitais para acatar o pedido da PF e ordenar diligências contra oito empresários que trocaram mensagens de teor golpista em um grupo de Whats- App. O episódio enfureceu Bolsonaro, mas no Supremo, a decisão não surpreendeu ninguém. Desde a divulgação das mensagens dos empresários pelo portal Metrópoles, ministros esperavam uma reação de Moraes. O relator dos inquéritos que provocam dores de cabeça ao Planalto não confidenciou a colegas se o despacho decorreu apenas das conversas em que os aliados de Bolsonaro defendem um golpe ou se processos como o das milícias digitais contêm outros indícios de prática de crimes por eles. Para apoiar os aliados endinheirados e não expor o presidente, decidiu-se que as críticas à operação seriam canalizadas por terceiros, como Flávio Bolsonaro. Os envolvidos seguiram o plano à risca. Em agendas de campanha, Bolsonaro não desferiu ataques a Moraes e, nas redes, o trabalho ficou com seus aliados.

A ação da PF enfureceu o Procurador-Geral, Augusto Aras, que afirma não ter sido informado previamente (Moraes o desmentiu). O inquérito é sigiloso, mas especula-se que o PGR teria ficado incomodado porque os celulares apreendidos poderiam trazer diálogos dele com empresários bolsonaristas. As apurações também podem apontar eventual financiamento de atos antidemocráticos, inclusive no Sete de Setembro de 2021, quando Bolsonaro disse que não acataria mais decisões do STF. A ação autorizada por Moraes também incomodou juristas por ter origem em uma conversa privada. A gravidade dos ataques à Constituição e as conclusões posteriores poderão dirimir a questão, que por enquanto favorece amplamente a iniciativa do TSE. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, por exemplo, disse que a manifestação dos empresários era uma “traição à Pátria”.

Os próximos passos de Bolsonaro ainda são uma incógnita. Assessores palacianos e ministros envolvidos na pacificação, principalmente do Centrão, dizem que ele está ciente de que seus avanços sobre o TSE e Moraes podem lhe custar pontos nas pesquisas e até mesmo comprometer o registro de sua candidatura. O presidente, por outro lado, tem um histórico errático e costuma se deixar levar em meio à massa extremista. “O principal ponto da ação da PF não é como isso irritou o governo, mas como inflamará os atos do mês que vem. Vivemos numa situação em que os radicais incentivam o presidente a reagir de forma dura e nós o puxamos de volta”, pontua um interlocutor da ala política, sob reserva. Nos corredores do Planalto, uma coincidência é frisada. No ano passado, Moraes decretou, em 20 de agosto, buscas contra aliados de Bolsonaro, como o cantor Sérgio Reis, o deputado federal Otoni de Paula e o ruralista Antonio Galvan, acusados de organizar e financiar os protestos antidemocráticos do Sete de Setembro. Foi depois deste despacho que, dias depois, no ato de São Paulo, o presidente chamou o ministro de “canalha” e prometeu descumprir decisões judiciais. A similaridade preocupa os aliados do capitão. A decisão do TSE, na quarta-feira, de mandar retirar da internet o vídeo em que Bolsonaro ataca o sistema eleitoral para embaixadores estrangeiros só comprova que o rigor do tribunal e a tensão se manterão.

Atos no dia 7

A avaliação entre os fardados, porém, é de que Moraes tem “trânsito” e “afinidade” com as Forças Armadas. O ministro mantém canal aberto com generais, sobretudo do Comando do Leste, que abrange o Rio, reduto eleitoral do mandatário. A relação, dizem militares, pode ajudar a pacificar os ânimos entre TSE e o Planalto e, assim, pesar para que Bolsonaro amenize o tom no Sete de Setembro. O palco fluminense ainda suscita dúvidas. No Rio, o desfile cívico-militar não ocorrerá na Avenida Presidente Vargas, conforme a tradição, ou na praia de Copacabana, como desejava Bolsonaro. Existe a previsão de uma parada na Vila Militar do Rio na véspera do Bicentenário, no dia 6. No dia seguinte, a Avenida Atlântica terá apresentações mais simples, com as águas tomadas por navios de guerra da Marinha e performances da Esquadrilha da Fumaça e de paraquedistas do Exército. As Forças foram informadas pela Defesa e pelo Planalto de que haverá uma estrutura de cerimônia oficial na altura de Copacabana, próximo ao Forte. A presença do comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, ainda não está confirmada. Após esse ato oficial, deve ocorrer na orla uma manifestação de apoio ao presidente.

Antes disso, na parte da manhã, será respeitado o rito tradicional em Brasília. Bolsonaro participará do hasteamento da bandeira no Alvorada e vai se locomover até a estrutura montada na Esplanada nos Ministérios. Na celebração, ele estará ladeado pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e por outros chefes de governo de países de língua portuguesa. Como no ano passado, o capitão tende a comparecer à manifestação dos seus apoiadores que deve acontecer na sequência. Porém, ainda não sinalizou se discursará. Por ora, o mapeamento realizado pelo Exército e pelo Ministério da Defesa não vê ameaças de depredações ou invasões de sedes de Poder em Brasília ou no Rio. As forças de segurança que vão atuar em Brasília, por outro lado, querem impedir que caminhões acessem a Esplanada dos Ministérios e se aproximem da sede do STF. No ano passado, a presença de caminhoneiros foi uma surpresa e gerou momentos tensos. Este ano, por outro lado, haverá 28 tratores participando da parada oficial, deslocados por ruralistas que apoiam o presidente, a pedido dele. A ideia inicial era levar 300 deles, com o apoio do movimento Brasil Verde e Amarelo. O grupo também vai disponibilizar o carro de som que será usado pelos bolsonaristas em seguida à exibição militar.

PREPARAÇÃO Outdoor de apoio a Bolsonaro anuncia o desfile em Brasília (Crédito:Wenderson Araujo)

Esforço simbólico

Ainda é uma incógnita se Bolsonaro vai conseguir instrumentalizar o Sete de Setembro, mas as tentativas têm sido intensas. Um relatório elaborado por pesquisadores da UFBA e da UFSC mostra que aumentaram os ataques ao TSE desde junho, quando se tornaram mais frequentes as convocações para os atos. Segundo o trabalho, os pedidos de apoio ao voto impresso (pauta principal dos protestos de 2021) diminuíram para dar lugar à incitação a um golpe. A celebração do Bicentenário, que ocorrerá a 25 dias do pleito, também será um teste para se aferir o sucesso das investidas do bolsonarismo em capturar o imaginário associado à Independência.

A história tem força política, como sabem os governantes. No centenário da Independência, em 1922, o presidente Epitácio Pessoa tentou projetar uma visão moderna e pujante do País por meio de uma ambiciosa Exposição Universal no Rio de Janeiro (o prédio da Academia Brasileira de Letras é uma das heranças desse evento). Em São Paulo, foi inaugurado o Monumento à Independência contíguo ao Museu do Ipiranga, que havia sido construído 30 anos antes com dinheiro de cafeicultores e industriais locais. Foi o momento em que se reconciliou a visão republicana e a memória da monarquia, com a reabilitação de Dom Pedro I e Dom Pedro II. Cinquenta anos depois, a ditadura associou a Independência ao regime militar durantes as comemorações do Sesquicentenário – um marco inusual. Na ocasião, os despojos de Dom Pedro I foram repatriados e circularam por várias capitais do País, e desde então estão numa cripta no prédio erguido no Ipiranga. O atual empréstimo do coração do imperador em Brasília tenta repetir o gesto.

Essa última operação de Bolsonaro é, por assim dizer, a culminação de um esforço simbólico. Ele e seus apoiadores têm se esforçado nos últimos anos para reescrever a história do País, ainda que o governo tenha “acordado tarde para a importância da efeméride”, segundo o historiador Jurandir Malerba, professor titular da UFRGS. Ele aponta que o momento está servindo para uma reinterpretação retrógrada e conservadora, que reedita “discursos edificantes”. Assim como o bolsonarismo foi turbinado por meio de fake news, a manipulação da história está gerando a fake history, diz Malerba. Grupos bolsonaristas tentam mostrar teorias conspiratórias sobre o passado e contar a “história nunca revelada”. Divulgam versões que associam a separação do Brasil de Portugal à expulsão dos mouros da Península Ibérica. É uma aberração. Juntar símbolos como as cruzadas, a cruz da ordem de Cristo (que consta do material oficial do governo), templários e o orgulho cristão são apenas pastiches sem qualquer rigor científico usados como combustível para inflamar radicais. Essa interpretação paralela da história, agora, se traduz no discurso que prega a urgência da libertação do Brasil da “ameaça comunista”. Na mesma lógica, busca-se revalorizar a monarquia. O presidente patrocinou essa falsificação da história nos órgãos de cultura.

PATRIOTAS Início da campanha do presidente em Juiz de Fora (MG), dia 16 (Crédito:Ricardo Moraes)

Até agora, as investidas do mandatário foram em vão. Na sociedade, o apoio à ditadura até diminuiu. Segundo uma pesquisa Datafolha divulgada no dia 19, 75% dos brasileiros dizem que a democracia é sempre a melhor forma de governo, enquanto 7% preferem a ditadura em determinadas circunstâncias. Em setembro de 2021, 70% eram a favor da democracia e 9% apoiavam a ditadura. A verdade alternativa pregada pela bolha bolsonarista ainda não conseguiu ecoar no imaginário da população, que apoia a normalidade democrática. O Bicentenário, ao contrário do que deseja o presidente, serve como oportunidade para a Nação rediscutir sua identidade e avaliar por que continua a ser o País de um futuro que nunca chega, a registrar uma das maiores desigualdades do mundo e qual a razão das vozes anacrônicas que pregam a volta a regimes autoritários ainda se perpetuarem.

A apropriação da efeméride
Governos em 1922 e 1972 usaram a Independência para projetar modernidade e legitimar o regime militar

O centenário da Independência, em 1922, foi marcado por uma exposição universal na capital da República. Os pavilhões grandiosos projetavam uma imagem de modernidade para as delegações estrangeiras. Mas a reforma urbana no Rio provocada pelo evento agravou a marginalização dos pobres. A eclosão do movimento tenentista e a Semana de Arte em São Paulo prenunciavam a mudança do eixo econômico e o fim da República Velha oito anos depois. No Sesquicentenário, em 1972, os militares organizaram um cortejo com os restos mortais de Dom Pedro I, que foram repatriados. O início da popularização da TV em cores ajudou no espetáculo ufanista. Era o período da maior repressão e censura. Mesmo assim, ocorreu um boom de lançamentos editoriais e debates sobre o significado histórico da data, o que acontece com menos vigor no Bicentenário.

PÚBLICO Inauguração do Monumento à Independência no Ipiranga, durante o Centenário. Cartaz (no destaque) anuncia a exposição no Rio, em 1922. Em 1972, os militares promoveram desfiles dos restos mortais de Dom Pedro I, como no Aterro do Flamengo (abaixo). (Crédito:Divulgação)
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