Por Flaviano Cássio, estudante de Direito da Faculdade Integrada do Sertão (FIS) 

Cheirosinho[1], como todos chamam na minha cidade é um senhor que mendiga[2] pelas ruas de Belmonte. De aparência insólita, aparenta ter já mais de 50 anos (por certo tem bem menos), é magro e – o que mais chama atenção dentro da sua configuração física, é algo que paira a capacidade olfáctica das pessoas – o cheiro do cheirosinho é insuportável, o nome que deram ao homem é uma contradição a sua situação de odor; algo interessante se ficar confirmado a partir desse escrito que é de contradições que vivemos.

Esses motivos traçados já bastariam para a sua atual condição de exclusão e de repugnância diante dos que se dizem ‘normais’ na minha cidade. Porém, além disso, falam que ele é também uma cabeça alienada[3]. E nisso achei folego para uma tentativa breve de reflexão, no qual pudesse observá-lo na condição inevitável de exclusão social e como portador de loucura, já que não se pode dizer que está nos padrões de racionalidade da invenção recente do “homem padrão ou medida”. Deixo ante isso uma tese Foucaultiana, não sei se bem nessas palavras: Basicamente, temos que observar que nossos métodos de exclusão social estão sempre ligados a alguma forma de reintegração espiritual[4]. Logo, mais isso fará sentido…

Olhando direcionalmente, tenho minhas suspeitas da sensibilidade que hoje todos dizem ter para com toda a massa de excluídos e desfavorecidos. Simplesmente, Cheirosinho aos olhos dos belmontenses, ou ao menos no tratamento que na maior parte das vezes lhe dão deixam uma questão em evidencia: (i) acreditamos realmente ter alcançado um status de humanidade e de razão no qual toda a possibilidade de loucura foi excluída, afinal um homem comum nunca estaria nessa situação.

A razão na modernidade é justamente a impossibilidade de ser louco, de ser extravagante; e a sabedoria encontra-se num lugar privilegiado onde pode justamente encontrar a sua verdade. (ii) O penso, logo existo do Pai da Modernidade ao que parece foi seguido ao pé-da-letra. E, sendo assim, ser louco é a incapacidade de pensar racionalmente, logo, denota-se, por isso, sua não existência como ser social – torna-se alguém que todos veem, mas que na realidade fazem pouca questão.

“A razão na modernidade é justamente a impossibilidade de ser louco, de ser extravagante; e a sabedoria encontra-se num lugar privilegiado onde pode justamente encontrar a sua verdade”

E isso não significa que seja ele invisível, e sim que o usamos diante de nosso espirito racional e capitalista muito mais como memória e demasiadamente pouco como compaixão. Ele denota o que todos não querem ser (dai falar em reintegração espiritual), e que na realidade não podem ser caso queiram ser aceitos por outros. A pobreza, a mendicância e a loucura tornaram-se memória que doí no peito – foram e são distanciados dos nossos centros de produção de verdade, de saber, de companhias e de amores, porém, persisto que isso ainda não é humanizante, pois não é o fim dessas realidades que almejamos, sua reprodução como debilidade servirá como temor para que todos possam ser algo mais: ganhem mais dinheiro, e não sejam loucos e sim úteis para o trabalho.

E, ao invés, de querer banir essas experiências, fazem dela algo normal ou suportável; já que não serão eliminadas, e estruturalmente ninguém quer deixar de respirar capitalismo tecnológico: bem, se isso é amor, considero-me um tolo insensível, ou simplesmente não vou afirmar-me tão amoroso se tiver cego por tanta razão. Ou ainda, se tiver amor serei ao menos singular…

 Não entendo, as pessoas dizem amá-lo (o Cheirosinho) por vê-lo numa condição moral de subjugação econômica, mas ao mesmo tempo mostram para com ele todas as formas de distrato – o resto do que sobra e que ninguém quer ser. Ora… Então, criaram um amor que recusa imitações, e nada mais cristão do que hoje continuar a agir assim. O cristão hoje apreendeu a desprezar a loucura, o que me parece sem dúvida uma grande omissão para com a própria religiosidade e anos valiosos de experiência jogada fora.

nostalgia de la crux, em uma literatura de menos inclinações para o nada, entenderia que o Cristo, em sua morte, como a maior evidencia de que foi a loucura o que o maior dos homens buscou (afinal são cenas de morte, animalidade; a máxima da loucura do homem) e, não deveríamos então negá-la já que foi até fonte de inspiração divina.

Porém, o cristão prefere dizer que o Cristo veio ao mundo por amor e fez uso dessa máxima loucura por que era dela que queria nos livrar, isto é, nos purificar usando toda loucura mundana. Bem, isso pode até parecer bonito, mas é ainda a eliminação da loucura que busca, e que em termos de uma micropolítica pode ser observada na vida do Cheirosinho, é mais um louco que não pode ser compreendido como louco, em uma estrutura social de avaliação moral altíssima, e onde até a religiosidade se diz racional[5].

“Porém, o cristão prefere dizer que o Cristo veio ao mundo por amor e fez uso dessa máxima loucura por que era dela que queria nos livrar, isto é, nos purificar usando toda loucura mundana”

Racionalismo

Tanto racionalismo até soaria bem aos ouvidos de todos, se não carregasse em seu bojo uma série de questões sem explicação. Veja: em termos de loucura e razão, poderia realmente alguém afirmar sem margem de dúvida a loucura do Cheirosinho? Se o fizesse, não já o faria dentro das limitações e falsificações da sua razão? Como pode: criamos uma razão que julga a loucura sob parâmetros da racionalidade? Isso é pouco considerável, afinal, só querendo que a loucura fosse coerente consigo mesma para afirmá-la dentro da razão, e para isso ela já deveria ter deixado de ser louca.

O amor de altruísmo foi abolido, isso é fato, agora ele reflete que nossos valores foram desencantados[6] há muito tempo, e hoje com os pés na terra podemos ser mundanos (amor ao mundo) de forma moral, ética e religiosa. Combinando todo um jogo de eliminações e falsificações, vivemos assim uma contradição dentro da outra, mas sob o signo de um valor moral, eis ai a incoerência. Talvez, alguém diante desse caso prefira ir direto às repartições públicas e atacarem por sua inatividade, pois deveriam ter tratado de forma decente o ‘pobre louco’. Mas, isso seria uma forma de retardamento da exclusão do qual todos impõe ao Cheirosinho? Pois, como iriam tratar esse louco hodiernamente em termos médicos e de internação? Alguém ai sabe afinal o que é loucura hoje?

 A grande virada que hoje as ciências tal como psiquiatria ou a psicologia, pelo menos por já se prefigurarem como as que estão na missão de resolver esses problemas, é que apreenderam a tratar o homem diante de um saber-objetivo sob dois modos conjuntamente: Um jurídico – afinal seria um procedimento de interdição que constataria a debilidade da saúde mental do cheirosinho, e sendo assim essa etapa reconheceria seu lugar como sujeito de direito, por isso, seria basicamente desculpabilizado por suas loucuras, já que não teria condição para falar por si; Outra face é a social – ou acham que depois de declarada a interdição, todos vão olhar para Cheirosinho e dizer: – Você agora é um novo homem, chegue aqui para um abraço?

Claro que não, agora se tem apenas a última certeza que ele é realmente louco, anormal ou irracional; isso per si não configura uma vida nova, apenas a institucionalização da exclusão médica e moral. Será internado para tratamento psicopatológico, pois se apreendeu ‘infantilmente’ a ver a loucura limitadamente e exclusivamente como doença mental que se cura com internação médica.

Mas, a maioria acreditaria ter feito um bem ao cheirosinho. Não adianta a marginalidade no qual esse individuo se encontra não se resume a politica pública de qualidade, nem a simples humanização para com os mais desfavorecidos – ainda por esses meios encontrar-se-á no ápice a exclusão pior que já se criou: a moralização.


[1] Um pouco de cheirosinho em uma matéria do Belmonte notícias. http://portalbelmonte.com.br/?p=470

[2] Prefiro o termo mendicância ao de andarilho, não se iluda com a matéria, pois os motivos sociais que possibilitam sua existência, não são de um homem comum que apenas perambula. A condição de mendigo é mais deplorável e mais excludente e é isso que se observa na verdade.

[3] Portador de alguma doença mental, louco – isso no que essas palavras refletem na sua condição de a-social. Pois, o velho senhor não parece violento a ninguém.

[4] Cf. História da Loucura na Idade Clássica.