Do G1

O RJ2 revelou nesta segunda-feira (31) um esquema montado com funcionários públicos para fazer plantão na porta dos hospitais municipais do Rio, atrapalhar reportagens e impedir que a população fale e denuncie problemas na área da Saúde.

A organização tem escalas diárias, horários rígidos e ameaças de demissão.

Resumo

A reportagem mostrou que:

por grupos de Whatsapp, funcionários públicos são distribuídos por unidades de saúde municipais para fazerem uma espécie de plantão;
em duplas, eles tentam atrapalhar reportagens com denúncias sobre a situação da saúde pública e intimidar cidadãos para que não falem mal da prefeitura;
O RJ teve acesso ao conteúdo dos grupos e viu que, após serem escalados, eles postam selfies para dizer que chegaram às unidades;
um dos funcionários aparece em várias fotos ao lado de Crivella e tem salário de mais de R$ 10 mil;
quando conseguem atrapalhar reportagens, eles comemoram nos grupos;
a prefeitura não nega a criação dos grupos e diz que faz isso para ‘melhor informar a população.
Entre os participantes de um dos grupos, um telefone chama a atenção. O número aparece registrado como sendo do próprio prefeito, Marcelo Crivella. O Jornal Nacional apurou que o prefeito já usou esse número. A equipe de reportagem ligou, mas ninguém atendeu.

“O prefeito, ele acompanha no grupo os relatórios e tem vezes que ele escreve lá: ‘Parabéns! Isso aí!’”, contou à TV Globo um dos participantes dos grupos.

As ‘invasões’

Em uma entrevista ao vivo para o Bom Dia Rio em 20 de agosto, no Hospital Rocha Faria, dona Vânia cobrava uma transferência para a mãe que tem câncer, mas não conseguiu terminar a conversa com a repórter Nathália Castro porque dois homens começaram as agressões verbais e gritos de “Bolsonaro”.

A repórter pediu desculpas para Vânia, encerrou a reportagem e as agressões dos dois homens continuaram, gerando uma confusão.

Dias depois, no Hospital Rocha Faria, o repórter Ben-Hur Corrêa falava da falta de equipamentos de raios-x e da situação do caixa da prefeitura, quando dois homens impediram a reportagem.

Em seguida, um dos homens botou o crachá e foi em direção ao interior do hospital.

Os ataques não acontecem por acaso. Ao contrário: são organizados e pelo poder público.

Os agressores são contratados da prefeitura do Rio. Recebem salários pagos pelo contribuinte para vigiar a porta de hospitais e clínicas, para constranger e ameaçar jornalistas e cidadãos que denunciam os problemas na saúde da capital fluminense.

Nesta segunda-feira (31), o repórter Paulo Renato Soares fazia uma entrevista na porta do Hospital Salgado Filho, no Méier. Ao primeiro sinal de que a gestão da saúde poderia ser criticada, o entrevistado foi interrompido (veja no vídeo acima).

Funcionário da prefeitura: “Fala isso não, meu querido”.
Entrevistado: “Oi?”
Funcionário da prefeitura: “Fala isso não, cumpadre”.
Entrevistado: “Como, perdi um dedo, não posso falar?”
Funcionário da prefeitura: “Fala isso não, meu irmão”.
Entrevistado: “Não tô falando do hospital, não. Estou falando de Rocha Miranda”.
Funcionário da prefeitura: “Você foi bem atendido, não foi?”
Repórter: “Ele [o entrevistado] não pode falar da saúde?”
Funcionário da prefeitura: “Não”.
Repórter: “O senhor pode deixar ele falar da saúde?”
Funcionário da prefeitura: “Está tudo indo bem, meu querido”
O repórter, então, começa a confrontar o funcionário:

Repórter: “O senhor é o senhor José Robério Vicente”.
Funcionário da prefeitura: “O hospital está tudo certinho, meu querido. O prefeito está trabalhando correto e bem.”
Repórter: “Quem está trabalhando bem?”
Funcionário da prefeitura: “Com certeza, o prefeito está trabalhando bem. Na saúde. Que negócio é esse, rapaz?”

José Robério Vicente Adeliano foi admitido na prefeitura em novembro de 2018, em “cargo especial”. O salário bruto é de R$ 3.229.

Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018, como assistente 3 e salário de R$ 3.422.

Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018 — Foto: Reprodução/TV Globo
Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018 — Foto: Reprodução/TV Globo

Guardiões

Os dois fazem parte de um grupo que se apresenta em um aplicativo de mensagens como “Guardiões do Crivella”. Para cumprir a tarefa de tentar calar a população e a imprensa, os guardiões têm até escala.

O RJ2 teve acesso às conversas desse e de outros dois grupos. Um identificado como Assessoria Especial GBP — gabinete do prefeito — e o outro, como Plantão.

É por esses grupos que os funcionários da prefeitura ficam sabendo pra onde vão – em duplas ou sozinhos – para cumprir o dia de trabalho e impedir que se mostrem as dificuldades na saúde.

Quando chegam nas unidades, ainda de madrugada, precisam registrar a presença. Na rotina, todos os dias têm que mandar selfies do lugar onde estão: “Hospital Souza Aguiar, cheguei cedo”; “Bom dia companheiros, mais um dia no Albert Schweitzer”; “Equipe Pedro 2º”; “Hospital Evandro Freire – Beto e Dani” foram algumas mensagens postadas.

Em uma foto aparecem Robério e Ricardo Barbosa, que a TV Globo encontrou no Salgado Filho, mostrando que estavam a postos.

Depois de bater essa espécie de ponto, os funcionários públicos monitoram e relatam tudo o que acontece na porta das unidades de saúde. Principalmente a chegada dos jornalistas.

Foi assim, na quinta-feira (27), quando a equipe da Globo esteve no Rocha Faria. Eles ficam sempre com o celular na mão, fazem vídeos dos jornalistas, estão sempre perto da reportagem e esperam o momento de agir.

Os escalados naquele dia eram:

Marcelo Dias Ferreira, desde setembro de 2018 na prefeitura com cargo especial e salário bruto de R$ 2.788. Luiz Carlos Joaquim da Silva, o Dentinho, contratado em dezembro de 2019 com salário bruto de R$ 4.195, em cargo especial.

Dentinho tem várias fotos com Crivella nas redes sociais desde a campanha para a prefeitura. É ele também que impede a entrevista com dona Vânia (citada no inicio da reportagem ao cobrar uma transferência para a mãe com câncer).

Bronca após atraso

‘ML’ dá bronca porque equipe não conseguiu atrapalhar reportagem da Globo: ‘muito triste’ — Foto: Reprodução
‘ML’ dá bronca porque equipe não conseguiu atrapalhar reportagem da Globo: ‘muito triste’ — Foto: Reprodução

Na quinta-feira (27), no entanto, os vigias estavam atrasados. Não viram o repórter Ben-Hur entrar ao vivo, ainda muito cedo, o que provocou irritação e cobrança nos grupos.

Alguém identificado apenas como ML manda a foto da reportagem e escreve: “A Globo está no Rocha. Cadê a equipe do Rocha? Mateus, liga pra equipe do Rocha”.

Mateus responde: “Sim, senhor”.

ML, de novo, questiona: “Quem está no Rocha?? Gente, muito triste, não derrubamos a matéria (…) Não pode haver falta, nem atraso. Falhamos no Rocha Faria. Inaceitável”.
Depois da bronca, além dos dois escalados, chegou um reforço: outra dupla de agressores.

Eles atrapalharam a continuação da reportagem – e comemoraram:

“Eu acho que não é ao vivo. Acho que estão fazendo matéria pra mais tarde, mas tentaram entrar várias vezes e nós interrompemos por essas vezes todas aí”, diz um deles, em um áudio enviado no grupo.
ML – que aparece no grupo – está sempre dando ordens. “Marquem durinho aí, hein. Não dá mole pra eles, não”, diz em uma das mensagens.

ML é Marcos Paulo de Oliveira Luciano, o Marcos Luciano. Outro que divulga várias fotos com o prefeito.

Em 2018, Marcos Luciano ganhou uma moção de aplausos e louvor na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), a pedido da deputada Tia Ju, do Republicanos, o mesmo partido de Crivella.

O currículo de Marcos, apresentado na época, revela a proximidade dele com o prefeito. Trabalhou como missionário com Crivella na África e no Nordeste do Brasil, foi um dos coordenadores das campanhas eleitorais do bispo ao Senado e à prefeitura.

Desde 2017, Marcos Luciano é assessor especial do gabinete do prefeito. Em julho, o salário foi de R$ 10,5 mil.

“O sistema todo é chefiado pelo doutor Marco Luciano. Doutor Marco Luciano é um amigo do Crivella. É o chefão geral, tá? Não sei se ele é parente, se é da Igreja Universal, não sei, não, mas sei que ele é muito chegado. É uma pessoa de extrema confiança do prefeito Crivella.”

A fala é de um dos contratados da prefeitura que fez parte do esquema para vigiar a porta dos hospitais. Ele diz que era intimidado pelos chefes.

“Todo tempo, ameaça é de demissão. Quando eles fazem reuniões com a equipe, ninguém pode entrar de celular e passam detectores de metal em cada funcionário e as reuniões são geralmente na prefeitura, e é muita ameaça.”

‘Missão’ antiga, intensificada na pandemia

O homem conta ainda que a tática foi adotada no fim do ano passado e aumentou durante a pandemia.

“Nós temos essa missão lá já há mais de 8 meses. Antes, já estava funcionando, mas quando entrou a Covid em março, ficou todos os dias. Existe plantão nas unidades para poder cercear a imprensa”, conta.
O que diz a prefeitura
Em nota, a Prefeitura do Rio diz que “reforçou o atendimento em unidades de saúde municipais no sentido de melhor informar à população e evitar riscos à saúde pública, como, por exemplo, quando uma parte da imprensa veiculou que um hospital (no caso, o Albert Schweitzer) estava fechado, mas a unidade estava aberta para atendimento a quem precisava. A Prefeitura destaca que uma falsa informação pode levar pessoas necessitadas a não buscarem o tratamento onde ele é oferecido, causando riscos à saúde”.

Repercussão

Entidades de jornalismo e de direitos humanos enviaram notas de repúdio às tentativas de funcionários da prefeitura do Rio de impedir o trabalho da imprensa na porta de unidades de saúde municipais. Veja abaixo:

A Associação Brasileira de Imprensa afirmou que os episódios repetidos nas portas dos hospitais mostram que não estamos diante de fatos isolados, mas de uma política do prefeito pra constranger repórteres e cidadãos.

“A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) denuncia mais um atentado contra a democracia por parte do prefeito Marcelo Crivella. Em ações orquestradas, funcionários da prefeitura tentam intimidar, com agressões verbais e ameaças de agressões físicas, jornalistas que trabalham em reportagens sobre a situação de calamidade dos hospitais públicos no Rio. As ameaças se estendem aos usuários que prestam depoimentos sobre o mau atendimento. Episódios ocorridos nas portas de vários hospitais municipais nos últimos dias mostram que não estamos diante de fatos isolados, mas de uma política do prefeito para constranger repórteres e cidadãos. A ABI reafirma seu compromisso com a liberdade de expressão e deixa claro que irá às últimas consequências para defender esses princípios. Não aceitaremos que o prefeito Crivella tente violentar a democracia e impeça o trabalho da imprensa”, diz a nota, assinada pelo presidente Paulo Jeronimo.

A Associação Nacional de Jornais lamentou que funcionários da prefeitura do Rio estejam impedindo a atividade jornalística e afirmou que os maiores prejudicados são os cidadãos do Rio, a quem esses funcionários deveriam prestar seus serviços e de quem recebem seus salários.

O presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, Marcelo Träsel, afirmou que a “estratégia de constranger entrevistados e repórteres ou impedir o acesso a instituições públicas é não apenas um retrocesso autoritário, mas uma estratégia para minar a democracia e a liberdade de imprensa”: “É dever do poder público prestar contas à sociedade e fornecer informações transparentes sobre eventuais falhas no sistema de saúde”.

O presidente da Abraji disse ainda que usar servidores públicos ou acionar militantes para impedir o trabalho de repórteres demonstra incapacidade de lidar com críticas e grave ameaça à liberdade de imprensa.

Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil, disse: “Em uma democracia, as autoridades em todos os níveis devem respeitar o direito da população de acessar informações de interesse público, especialmente na área da saúde durante uma pandemia que matou já mais de 120.000 brasileiros . O alegado envolvimento do prefeito Crivella em um esquema para restrição do trabalho da imprensa não é só um absurdo, mas um atentado a direitos fundamentais”.