Do Diario de Pernambuco
Após apresentar o plano de trabalho, definir metas e superar tentativas de intervenção do governo e seus aliados, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid realiza, nesta semana, as oitivas das primeiras testemunhas. Ex-ministros da saúde, que tiveram papel crucial durante o avanço do novo coronavírus pelo país, prestam depoimento aos senadores que integram o grupo de investigação. General do Exército e ex-titular da pasta, Eduardo Pazuello é considerado peça-chave no quebra-cabeça para entender o que ocorreu com o país na crise sanitária.
O militar deve ser o último, entre os ex-ocupantes do ministério, a prestar esclarecimentos. A oitiva dele está marcada para quarta-feira. Há possibilidade de que seja enquadrado como investigado, caso não consiga deixar claro que não contribuiu para o agravamento da pandemia — ele seguiu à risca a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro. Já o governo terá de fazer uma escolha: ficar do lado do general e se arriscar a carregar todo o ônus das falhas no enfrentamento da crise, ou deixar a carga sobre o ex-ministro.
Para responsabilizar Bolsonaro, a oposição tem nas mãos o próprio pronunciamento público de Pazuello, admitindo que “um manda, e o outro obedece”. A frase foi dita em outubro, ao lado do presidente, para justificar o fato de ter voltado atrás nas negociações de compra da vacina CoronaVac. À época, o imunizante — desenvolvido pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo — foi tachado pelo chefe do Planalto de “vacina do Doria”, em relação ao governador paulista, João Doria, desafeto do Planalto.
Antes de Pazuello, a CPI ouvirá, amanhã, o primeiro ministro da Saúde da gestão Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, com sessão marcada para as 10h. À tarde, será a vez de o sucessor dele no cargo, Nelson Teich, prestar depoimento.
Mandetta é quem deve dar um tom mais ríspido contra o presidente. Ao fim da gestão, o médico já se mostrava contrário ao posicionamento adotado pelo mandatário na condução da pandemia. Divergências quanto ao distanciamento social, às restrições de atividades, o uso de máscaras e a recomendação da cloroquina como medicamento para tratar Covid-19 marcaram os embates entre o então titular da Saúde e o presidente (veja mais na Linha do tempo).
Os confrontos podem ser interpretados como um jogo de fins eleitoreiros, já que Mandetta é o único político entre os três que já comandaram a pasta neste governo. Além disso, ele surge como potencial candidato à corrida presidencial de 2022. O viés pode servir como argumento da base do governo para colocar em xeque o depoimento dele.
Ao contrário de Mandetta, Nelson Teich, que teve passagem relâmpago pelo ministério, não carrega raiz política. A ele são esperadas perguntas especialmente sobre o motivo que o levou a deixar o cargo. Após sair da pasta, o médico admitiu, em entrevistas, que a pressão para protocolar o uso da cloroquina como tratamento para Covid-19 contribuiu para renunciar à função. Coube a Pazuello, único entre os ministros sem formação na área de saúde, assinar o documento.
Cautela
Ouvidos os ex-ministros, a CPI voltará as atenções para o atual titular da Saúde, Marcelo Queiroga, previsto para depor na quinta-feira. Dele não são esperadas declarações desalinhadas, tampouco há a intenção, por parte da oposição, de criar uma rixa entre Bolsonaro e o ministro de forma a provocar mais uma destituição, que de nada serviria para melhorar a gestão da pandemia. Isso porque, nos bastidores, Queiroga é visto como figura importante para fazer valer escolhas científicas no enfrentamento da crise sanitária.
Após as oitivas e a partir do material colhido por meio delas, os senadores pretendem convocar novas testemunhas para desenhar a cronologia dos fatos. Traçado esse panorama, especialistas convidados devem auxiliar na análise. Um dos nomes sugeridos nos requerimentos é o do gestor de saúde Adriano Massuda, especialista da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Tivemos autoridades sanitárias que foram omissas, imprudentes e introduziram tratamentos sem evidência científica comprovada, expondo a população a risco”, sustenta Massuda.
Ele ainda não enxerga uma correção de rumo significativa do Ministério da Saúde com Queiroga. “Mudou o ministro, mas a pasta continua com uma atuação absolutamente ineficiente na gestão do sistema de saúde”, enfatiza. Para o especialista, a CPI, além da missão de responsabilizar autoridades que falharam na resposta à pandemia, tem outra vertente que, “apesar de secundária, pode ser ainda mais importante no sentido de dar elementos para a execução de ações”. “Ainda estamos diante de uma epidemia não controlada — com uma redução, mas diante de números elevadíssimos — e, mesmo assim, as medidas de restrições estão sendo afrouxadas, podendo levar o país a uma terceira onda. Precisamos mudar o rumo das respostas, e a CPI pode ajudar”, completa.
O cientista político José Oswaldo Cândido, professor de relações institucionais do Ibmec Brasília, espera evolução nas investigações. “Na CPI já se tem claramente os parlamentares que são mais favoráveis ao governo e quem é contra. O relator (Renan Calheiros, do MDB-AL) fez um discurso muito duro, e acho que ele não vai aliviar”, ressalta. “Acredito que podemos ter desdobramentos importantes. CPI é sempre imprevisível e, mais adiante, podemos ter, de alguma forma, reações do governo.”
Agenda da comissão
Depoimentos*
Amanhã
» Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde
» Nelson Teich, ex-ministro da Saúde
Quarta-feira
» Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde
Quinta-feira
» Marcelo Queiroga, ministro da Saúde
» Antonio Barra Torres, diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
*Todos serão ouvidos na condição de testemunhas.
Linha do tempo
Veja a cronologia das gestões dos então ministros da Saúde
Luiz Henrique Mandetta
» Assume em 1º de janeiro de 2019
» Reativa, ainda em janeiro, o Grupo de Trabalho Interministerial de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional
» Faz coletivas diárias sobre a
situação da pandemia
» Em 20 de março, intensifica a recomendação do “fiquem em casa”
» Faz alertas à população para evitar colapso no sistema de saúde
» Orienta uso de máscaras de pano. Brasil passa por crise de falta de equipamento de proteção individual e álcool em gel.
» Em 21 de março, diz não participar da decisão do presidente Jair Bolsonaro de mandar ampliar a fabricação de cloroquina.
» Pede isolamento vertical, focado em idosos, enquanto Bolsonaro trata o vírus como “gripezinha”
» Ministério anuncia uso de cloroquina em hospitais
» Em 6 de abril, nega expandir protocolo de uso da cloroquina para casos leves
» Em 16 de abril, é demitido. Nesse dia, Brasil tem 30.425 casos confirmados e 1.924 mortes
Nelson Teich
» Assume o ministério em 17 de abril
» Em 22 de abril, promete entregar diretrizes para guiar estados e municípios nas flexibilizações e restrições
» Apresenta o plano para orientar estados
» Em 14 de maio, é pressionado por Bolsonaro para expandir protocolo de uso da cloroquina
» Pede demissão em 15 de maio sem assinar o protocolo da cloroquina. Brasil tem 218.223 casos e 14.817 mortes por Covid-19
Eduardo Pazuello
» Assume interinamente em 15 de maio
» Cinco dias depois, indica cloroquina para pacientes com quadro leve
» Em 6 de junho, Ministério da Saúde retira do ar dados de infecções e mortes por Covid-19
» Em 27 de junho, governo fecha acordo para a compra de 100 milhões de doses da vacina da Oxford/AstraZeneca
» Em 21 de julho, recomenda tratamento precoce, que não em comprovação científica
» Toma posse como ministro da Saúde em setembro
» Em 20 de outubro, anuncia a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac. Bolsonaro o desautoriza, e ele é obrigado a desistir do contrato
» Em 6 de janeiro, assina relatório reconhecendo o iminente desabastecimento de oxigênio em Manaus, segundo a Procuradoria-Geral da República. Primeiros cilindros são enviados dois dias depois
» Sistema de saúde de Manaus colapsa por falta de oxigênio, em 14 de janeiro
» Em 11 de março, diz que o sistema de saúde brasileiro “não colapsou nem vai colapsar”
» Em 23 de março, é publicada a exoneração dele. Brasil tem 298.843 mortes e 12 milhões de casos da doença.