Correio Braziliense

 

Carla de Novaes, 37 anos, é de Santana, na Bahia, mas há cinco anos mora em Samambaia, no Distrito Federal, a 30 minutos da Esplanada dos Ministérios. Ela é a chefe de uma família com sete pessoas. Carla sobrevive com empregos informais, enquanto o companheiro trabalha em uma cooperativa, como catador. A renda é incerto, o que os torna dependentes do auxílio do governo. Mas nem isso tem permitido à família adquirir o essencial.

“Só conseguimos comprar o grosso, arroz e feijão, óleo, macarrão e farinha. A prioridade é a comida e algum remédio para já se prevenir e deixar guardado. A carne não tem como comprar, só quando tem um dinheirinho, por exemplo quando pega o auxílio”, explica Carla. O malabarismo vivido por essa família é um retrato do país que é campeão mundial na produção de alimentos, mas é castigado pela fome.

Segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 33,1 milhões de pessoas passam fome no Brasil. O número é chocante, mas ganha uma dimensão maior quando se verifica, no detalhe, a miséria de uma parcela significativa da população. Mais de 125 milhões de brasileiros não têm garantias em relação à comida. Adotam estratégias para escolher o que comer, ou abrem mão de refeições diárias.

Os moradores das regiões Norte e Nordeste têm sido os mais afetados, com 45% e 38% da sua população em situação alarmante, respectivamente. Quatro em cada 10 famílias dessas regiões reduziram parcialmente ou quase completamente o consumo de alimentos. Todas as pessoas ouvidas pela rede Penssan com insegurança alimentar têm em comum a baixa escolaridade e a vulnerabilidade social.

Segundo a rede Penssan, uma parte significativa dos brasileiros vive uma insegurança alimentar em nível moderado (quando o indivíduo não tem a quantidade suficiente de alimentos) e grave (sem condição de comprar alimentos ou passando fome). Ainda que receba benefícios governamentais, como o Auxílio Brasil, essa parcela da população não consegue ter comida no prato regularmente.

O estudo indica, ainda, que a fome é mais grave nos lares onde a mulher ou o homem chefe da família está desempregado ou em condição precária de trabalho, com renda inferior a um ou dois salários mínimos. Quando a faixa de renda é de meio salário mínimo por pessoa, a restrição alimentar atinge 32,7% das famílias, ainda que tenham recebido o Auxílio Brasil em algum momento.

Quando a renda é maior que um salário mínimo, o acesso pleno a alimentos chega a 67% das famílias. A salvação nos lares com dificuldade de aumentar a renda tem sido os aposentados. Quase metade da garantia de segurança alimentar (46,5%) ocorre quando há alguém que recebe o benefício do INSS.

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pri-1509-fome(foto: pri-1509-fome)

Escolaridade

Outro fator que permite a comida na mesa é a escolaridade. Em lares onde os responsáveis têm mais de oito anos de estudo, a segurança alimentar sobe para 50%, já a fome é instalada em 22% dos domicílios com chefes da família que tenham quatro anos ou menos de estudo. Além disso, entre 2020 e 2021, o aumento da fome em famílias que executam trabalhos informais foi de 14,3% para 20,3%, o que leva ao endividamento, consequentemente ao freio na compra de alimentos como prioridade.

No campo, o cenário é ainda pior, os alimentos não têm chegado aos próprios produtores, principalmente se são pequenos ou praticam a agricultura familiar. Os níveis mais severos de insegurança alimentar estão presentes em 38% dos domicílios brasileiros no meio rural.

Drama para as mães

Segundo os dados levantados pela rede Penssan, entre 2020 e 2021, a falta de comida saltou de 11,2% para 19,3% nos lares comandados por mulheres.

“É muito ruim porque às vezes faltam as coisas e não tem como comprar, as doações para cá diminuíram. Já ficamos dois dias sem comer nada, acontece muito quando pedimos na casa de alguém e não tem nada para entregar. Me preocupo mais com as crianças, porque o adulto até que aguenta, criança não entende nada o que se passa”, relata Carla de Novaes.

A moradora de Samambaia foi chamada para panfletar em uma campanha eleitoral. O trabalho é temporário, mas deu à mãe um conforto. Ela tem que alimentar duas crianças que consomem leite. Uma ainda mama no peito, a outra não. “Com frequência o leite das crianças falta. Tem dia que vou trabalhar já pensando que não tem nada pra dar pra ela [a filha mais nova que desmamou]”, diz.

De acordo com a pesquisa da Penssan, lares onde vivem crianças menores de 10 anos têm percentuais maiores de insegurança alimentar do que a média brasileira. Em pouco mais de um ano, a fome praticamente dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos, passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Nas regiões Norte e Nordeste, o quadro é particularmente mais grave, com 51,9% e 49,4% dos domicílios, respectivamente, em um nível de insegurança alimentar grave ou moderada.

Acesso à água

Além da comida, o acesso à água também foi avaliado no levantamento. Os pesquisadores concluíram que esses dois fatores estão diretamente relacionados. Em 42% dos locais onde se tem fome, também falta água. No Norte, esse percentual é de 48%; no Sudeste, 43%; no Centro-Oeste, 41,2%; e no Nordeste, 41,2%.

O levantamento feito pela Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), mostra um agravamento da fome no Brasil. Em um intervalo de dois anos, mais 14 milhões de pessoas passaram a conviver diariamente com a falta de comida no prato. Ela formam, assim, o contingente de 33 milhões de brasileiros que têm a fome como rotina.