Do RFI

 

Nesta quinta-feira (1°), entrou em vigor na França a nova legislação que acaba com o anonimato nas doações de óvulos ou de esperma utilizados por casais ou mulheres independentes que, por razões diversas, precisam desse recurso para concretizar o sonho da maternidade ou paternidade.

Essa mudança na lei de bioética é considerada quase como uma revolução na sociedade francesa. Daqui para a frente, no momento da doação, seja de óvulo ou de sêmen, os doadores terão de assinar um documento consentindo que sua identidade seja revelada no futuro, depois que a criança concebida dessa forma completar 18 anos, se ela manifestar o desejo de saber quem são seus pais genéticos.

No Brasil, a legislação ainda garante o anonimato aos doadores.

O processo de reflexão sobre a importância de uma pessoa concebida por meio de doação de gameta ter acesso à identidade de seu pai biológico ou da mãe genética durou décadas. Há 40 anos, quando os médicos começaram a realizar os primeiros procedimentos de fertilização in vitro na França, a infertilidade era vivida como uma vergonha, um tabu. Muitos casais escondiam a vida inteira dos filhos a forma como as crianças tinham sido concebidas.

Com o tempo, os profissionais que trabalham nos hospitais onde ficam os bancos de óvulos e de esperma viram o comportamento social mudar. Depois, a internet e o aparecimento das redes sociais facilitaram as pesquisas e o contato entre pessoas que tinham uma desconfiança em relação aos pais genéticos. Formaram-se grupos de ajuda, comunidades de pessoas buscando algum indício que pudesse esclarecer dúvidas sobre as circunstâncias da concepção. Os exames de DNA também se tornaram acessíveis para confirmar ou descartar alguma suspeita.

Também existem casais que nunca esconderam dos filhos que recorreram a uma doação, mas a legislação não permitia a identificação do doador. Nos últimos anos, psicólogos passaram a defender a transparência, e os legisladores aceitaram levantar parcialmente o anonimato sobre as doações. As condições são estritas.

A lei adotada determina que só a criança poderá solicitar as informações relativas à doação, depois de completar 18 anos, se assim o desejar. Os pais que no passado utilizaram um banco de gametas nunca terão acesso à identificação do doador. Homens e mulheres que fizeram esse gesto altruísta de voluntariamente ajudar casais e mulheres com problemas de fertilidade também nunca poderão pedir para conhecer um filho gerado a partir da doação que fizeram.

O princípio dessa evolução da lei é que toda pessoa tem o direito de conhecer suas origens, se o desejo partir dela, para que o processo de construção psíquica possa ocorrer sem segredos e da maneira mais saudável possível. É uma decisão individual.

Muitas pessoas geradas por métodos de reprodução assistida conhecem essa circunstância e se sentem bem com isso, vivem bem com o passado dos pais e não têm curiosidade sobre a origem genética de um óvulo ou de um espermatozóide doado. Mas outras têm, e os legisladores franceses decidiram que elas devem poder consultar a base de dados dos organismos oficiais.

Acesso aos dados centralizado e com acompanhamento psicológico

A lei de bioética de 2021 criou uma comissão nacional de acesso às informações, subordinada ao Ministério da Saúde, que irá acompanhar as pessoas interessadas em conhecer suas origens.

A pessoa em busca de um pai biológico ou de uma mãe genética poderá acessar os dados em duas etapas. Se quiser, no primeiro momento, poderá consultar dados como idade, situação familiar e profissional na época da doação, características físicas, estado de saúde, país de nascimento, as motivações pessoais do doador ou doadora registradas por escrito. A revelação do nome completo do pai ou da mãe genética pode ficar para uma segunda etapa. Mas as autoridades acreditam que a maioria dos interessados terão curiosidade de saber todas as informações.

Trata-se de um processo delicado, complexo, e que requer tempo para a estruturação das emoções. Existem histórias com final feliz, outras terminam em decepção. Por isso, a legislação prevê as duas etapas. Para alguns, tomar conhecimento de alguns detalhes da peça que falta na construção de sua história pode ser suficiente para seguir em paz na vida. Outros tentarão conhecer os pais genéticos. A filiação, no entanto, nunca irá mudar nos registros de identidade.

Queda nas doações?

Durante os debates no Paramento francês, houve a discussão se o levantamento do anonimato teria um efeito dissuasivo nos potenciais doadores. No entanto, há vários anos a maioria dos doadores que se apresentam nos Centros de estudos e de conservação de óvulos e esperma humano (Cecos) dizem ser favoráveis à divulgação futura de sua identidade. Esse consentimento era até agora informal, mas os doadores já se manifestavam a respeito. Desde ontem, tornou-se oficial.

Evolução na Europa

Na Suécia e no Reino Unido, que flexibilizaram o anonimato dos doadores, houve uma queda no primeiro momento de mudança da lei, mas depois as doações voltaram a subir e até ultrapassaram a média anterior. Especialistas franceses acreditam que se houver impacto no país, será momentâneo.

A França precisa atualmente aumentar os estoques de gametas disponíveis, porque a extensão, no ano passado, da reprodução assistida para casais de mulheres e solteiras aumentou consideravelmente a demanda. Os pedidos de acesso às técnicas de reprodução assistida passaram de uma média anual que vinha em torno de 2 mil inscrições até 2020, para 13 mil em 2021. A explosão da demanda é uma consequência da aprovação da nova lei de bioética.

Continua existindo uma enorme carência de óvulos no país, enquanto a doação de esperma é muito mais frequente. Mas isto tem a ver com a própria condição biológica: enquanto um homem pode doar milhões de espermatozóides, a produção de óvulos é limitada na vida de uma mulher.