Publicado às 06h19 deste sábado (12)

Por Flaviano Roque, cronista serra-talhadense

Isso deve ter mais de 20 anos… Recordo-me dos dias de domingo ensolarados e de um pequeno trecho de estrada, ainda feita de terra batida, ligando a cidade de Serra Talhada a Santa Cruz da Baixa Verde; da curva do “S”, tão perigosa, embora igualmente engraçada pelos movimentos que o velho Voyage 95 fazia ao subir a serra; éramos jogados de um lado para o outro, espremidos ao sabor da sinuosidade da subida. E seu Francisco dizia: “Posso fazer a curva de olhos fechados, conheço com a palma da minha mão”. Minha mãe, como toda mulher sábia, não deixava meu pai tapar as vistas, pois uma boa companheira é sempre a salvação da visão do homem (as mulheres, caro leitor, enxergam muito melhor que nós); e assim íamos subindo. Lá de cima, nós víamos a Vila Bela pequenina e uma estrada reta a se perder no horizonte. Parecia uma visão celeste da terra. E deve ser isso mesmo, o céu deve estar por de trás dessa longa estrada com uma curva em forma de serpentina na subida; uma prova de que inexistem caminhos retos que nos levem ao firmamento.

Aos domingos, esse era nosso rumo, pegar a PE-365 com destino ao velho sítio chamado Brejo ou Brejinho (para os mais íntimos), local onde estão as raízes do meu pai e, por conseguinte, o primeiro lugar onde eu e meus irmãos plantamos alguma coisa. A referência é sem erro: depois de subir toda curva a que nos referimos no parágrafo anterior, aplique-se a lógica infalível do “subiu tem que descer” e, na descida, é impossível não ver, em um monte próximo, o grande e inconfundível pinheiro-de-norfolk — ao pé dessa gigantesca árvore natalina está o sítio —, até chegar neste ponto, existem algumas estradas difíceis, quase tudo feito de pedra; chão de pedra, cercas de pedra, poços de pedra… A propósito, Drummond ficaria abismado com a capacidade de que o sertanejo possui para moldar pedras pelo caminho, sendo famosas as cercas de pedra na arquitetura rural. Afinal, com jeito e boa vontade, nem tudo é somente peso.

O meu pai costumava, durante esse trajeto, contar sua anedota de garoto do mato, de como andava algumas léguas por dia de bicicleta — mais para baixo do pé da Serra, já nas imediações do distrito de Jatiúca — para chegar até a roça do meu falecido avô Nelson Roque. Pegava no pesado por insistência própria, pois era o caçula da família, e todos mimam os seus menores, tendo os meus avós dado preferência para que ele se dedicasse aos livros. Meu pai é um homem negro e vindo de família pobre; venceu pelos estudos, e digo isso (venceu!) porque, ainda hoje, a vida para alguns é uma batalha de duas cores. Quando ele narra como descia a Serra, com sua barra circular sem freios, é notável o brilho nos olhos, o apreço de quem sabe o que é felicidade. Nos estudos, ele conta que era o primeiro da classe, mas, a verdade é que o mundo está cheio de coisas que os livros não ensinam, nesse último quesito, meu velho pai já havia sido laureado. E acreditem, tem muito homem roceiro com mais educação do que a última leva de bacharéis.

Mas voltemos ao sítio, antes que fujam as memórias… A hora do almoço era marcada pelo cheiro do fogão à lenha, pelas panelas de barro escuras do fogo e pela chaminé da cozinha ardendo em brasas. Alguma moça velha vinha avisar o termo de preparo da comida, a gente ia rodeando a mesa de madeira e aguardava que os de maior idade passassem primeiro pelas panelas. Para resumir numa expressão: tínhamos a casa cheia. Isso se dá quando todos falam ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo também, todos se entendem. Clima Brejeiro, sem dúvida.

Chegava a hora do repouso. Eu tomava canto debaixo do pé de ciriguela, vasto para os lados, sombreiro e, por incrível que pareça, os seus melhores galhos lembram bancos ou balanços naturais. Um emaranhado de troncos que sustentou meus avós, meus pais, meus irmãos, e segue firme para novas gerações. Nem o cajueiro gigante de Sergipe é páreo para esse pé de ciriguela.

À tarde, Tia Milinha fazia um doce de leite em bolas, que ouso dizer ser o melhor do mundo e, enquanto aguardava a iguaria, a gente se sentava num tamborete em frente à casa para chupar cana-de-açúcar; a tia só entregava o doce se eu e meu irmão cantássemos, como imitação de dupla musical, “Pense em Mim — Leandro e Leonardo”, e a gente gritava: “com destino a felicidadeeee”, até ficar sem fôlego…

Ah, o tempo! Nem sempre oblitera a memória das coisas, pois esse pedaço de céu dos Roque continua intacto. E se vocês descerem a Serra rumo a Santa Cruz, olhem bem, o Pinheiro estará lá, acenando, marcando nosso lugar ao solo. Ai daqueles que não têm raízes, não precisam ser profundas, mas, ai daqueles que não têm raízes!