Do Diario de Pernambuco

“Quando termina a paciência, mesmo o amor vira chamas”, diz um dos versos da canção em ritmo de reggae, enquanto o vídeo, disponível no YouTube, mostra a força das corredeiras do rio Nilo (chamado de Abay pelos etíopes).

O recado pouco sutil é direcionado ao Egito, e o motivo da tensão é a maior obra em construção no continente africano, solenemente chamada de Grande Represa do Renascimento da Etiópia (Gerd, na sigla em inglês).

Iniciada pela Etiópia em 2011, ao custo de US$ 4,9 bilhões (R$ 27,4 bilhões), será a maior hidrelétrica da África e a oitava do mundo, com potência de 6,45 GW, ou quase meia Itaipu. Seu lago, quando cheio, terá uma área do tamanho do município de São Paulo.

A usina fica no Nilo Azul, um dois braços principais do rio. Ela vem sendo bombardeada desde seu projeto inicial pelo Egito e, em menor escala, pelo Sudão, países que recebem as águas após o trecho etíope.

Os dois países dizem temer uma redução no volume de água que poderia ameaçar sua sobrevivência.

No caso do Egito, chamado há 2.500 anos de “dádiva do Nilo” pelo historiador grego Heródoto, estima-se que 90% da população dependa de uma forma ou de outra do rio, seja em razão da agropecuária, do turismo ou do fornecimento de água para casas e indústrias.

Em redes sociais e colunas de jornal, políticos alinhados ao ditador Abdel Fattah al-Sisi têm usado uma retórica belicosa, defendendo até um ataque armado contra a Etiópia e a destruição da represa, cuja estrutura básica ficou pronta em junho.

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O próprio al-Sisi não chega tão longe, mas tem deixado claro que o tema é sensível para o país. “A justiça da nossa demanda é comprovada pela existência das pirâmides. Esta água tem fluído para nós por milhares de anos, e nossa civilização foi construída baseada nela”, disse em 28 de julho.

A tensão esquentou porque há dois meses o reservatório da represa começou a encher, num lento processo. A expectativa do governo da Etiópia é começar a gerar eletricidade dentro de quatro anos.

A situação piorou após um tuíte triunfalista do chanceler etíope, Gedu Andargachew, dizendo que “o rio virou um lago… O Nilo é nosso”.

Etiópia, Sudão e Egito participam de negociações mediadas pela União Africana, que têm se arrastado. Dez outros países com rios que integram a bacia hidrográfica do Nilo acompanham atentos.

“O fato de a Etiópia estar negociando enquanto a represa enche aumenta consideravelmente seu poder de barganha”, afirma o pesquisador etíope Abel Abate Demissie, ligado ao centro de estudos britânico Chatham House.

Ele descarta a possibilidade de guerra, apesar do caráter nacionalista que o tema adquiriu.

“O Nilo tem grande valor sentimental para os etíopes. É de longe o principal fator de unidade nacional para muitos cidadãos”, diz.

Esse sentimento patriótico vem sendo explorado abertamente pelo governo do primeiro-ministro Abiy Ahmed, cuja popularidade caiu desde que ganhou no Nobel da Paz do ano passado.

Na Etiópia, a construção da represa ganhou contornos de mobilização nacional.

A Etiópia acusa o Egito de ter feito lobby junto a instituições internacionais para evitar seu acesso a financiamento para a obra. Como alternativa, criou “títulos patrióticos”, comprados por cidadãos para ajudar a pagar a conta, no que se transformou numa gigantesca vaquinha.

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A numerosa diáspora etíope na Europa, Israel e EUA foi instada a contribuir, e funcionários públicos doaram o equivalente a um mês de salário ao Estado. Apenas as 16 turbinas contaram com financiamento chinês.

A Etiópia vê a usina como fundamental para manter suas projeções de alto crescimento econômico, que se aproximavam de 10% ao ano antes da pandemia. A população atual, de 108 milhões de habitantes, deve atingir 170 milhões em 2050.

Já o Egito usa como argumento tratados do século passado que lhe são bastante vantajosos, assinados num momento em que o país era a potência indiscutível do norte africano.

Um deles, de 1959, dá aos egípcios poder de veto sobre represas no Nilo e lhe assegura um fluxo mínimo anual, de 55 bilhões de metros cúbicos por ano. Ao Sudão ficam destinados 18 bilhões de metros cúbicos, e não há menção a volume hídrico para os etíopes.

Mas a geopolítica da região mudou, diz o camaronês John Mukum Mbaku, pesquisador do Brookings Institution e autor de um livro sobre disputas legais envolvendo o rio Nilo. Tanto que a Etiópia sentiu-se confiante para ignorar o Egito e construir a usina.

“Desde tempos imemoriais, os egípcios monopolizaram as águas do Nilo, e os etíopes nunca disseram nada sobre isso”, afirma.

Agora, diz ele, a Etiópia negocia de uma posição privilegiada, entre outros fatores porque o chamado Nilo Azul, que nasce no país, fornece 86% da água do rio.

Os outros 14% vêm do Nilo Branco, que se origina em Uganda. Os dois ramais se encontram em Cartum, capital do Sudão, e seguem como um só Nilo rumo ao Egito.

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“A construção da represa deve aumentar significativamente a influência da Etiópia na África, porque o país planeja vender excedente de energia para países vizinhos”, afirma Mbaku.

O próprio Sudão, que fazia oposição radical à obra, vem moderando sua atitude, após a promessa da Etiópia de lhe vender energia barata. “De certa forma, o Egito está ficando isolado politicamente”, diz o professor.

Mas o país das pirâmides ainda é uma potência regional, com um dos maiores poderios militares do continente, uma sólida aliança com os EUA e um PIB que é seis vezes o da Etiópia.

Mbaku, apesar disso, também não crê em um conflito militar. “Os egípcios não estão preparados para sofrer as consequências diplomáticas de uma guerra”.

A pressão por um acordo tem sido intensa, sobretudo por parte da União Africana e dos EUA.

Um possível meio-termo envolveria a criação de um comitê internacional para supervisionar o fluxo do Nilo e garantir que a represa libere mais água em períodos de seca, mesmo que isso signifique menor produção de energia.

Isso resultaria, no entanto, em alguma perda de soberania da Etiópia sobre a usina, o que pode não ser algo facilmente aceitável para uma população que transformou a megaobra num símbolo de ufanismo.

Como diz o pop star etíope Teddy Afro em seu reggae, “nenhum cidadão ficará em silêncio sobre o Nilo”.