qPor Rogério Brandão, médico oncologista filho de Tauapiranga, zona rural de Serra Talhada

Os dias dos sertanejos são longos e exaustivos. As manhãs são quentes, secas e bastante ensolaradas. O calor é abrasante e curte a pele clara dos sertanejos. A rotina dos trabalhos nas roças, a poda do mato que insiste em crescer na terra seca, improdutiva e pedregosa, o ir e vir para as cacimbas em carros de boi rangentes para se abastecer de água, os cuidados com a pouca criação que se possui e outros tantos afazeres, consomem o tempo e a energia do sertanejo

Mas, as noites são longas e começam bem cedo! Mal o sol se põe e o manto da noite se faz presente, a única forma de se passar o tempo e aliviar o calor é colocar umas cadeiras nas calçadas e no frescor das noites, se preparar para dois dedos de prosa… Hoje já dispomos de energia elétrica na maioria dos distritos dos sertões, quase todos possuem seus aparelhos de televisão, mas não era assim até há bem pouco tempo. A única fonte de iluminação eram os candeeiros e as lamparinas à querosene. O mais abastados, donos de “bodegas”, possuíam candeeiros à gás: eram de uma luminosidade de dar inveja!

Adultos e crianças tomavam as calçadas. E ouvíamos histórias e mais histórias, a maioria de assombrações e aparições misteriosas, caçadas fantásticas, Lampião e seus cabras, coisas que aconteciam no meio do mato e que em nossa imaginação de criança se multiplicava e assumia proporções homéricas. Minha avó, Sofia Gomes de Sá, chegou a costurar embornais para Lampião e a cozinhar para seus cabras. Íamos dormir cheios de medo, deitados no escuro das redes, mesmo sem admitir o pavor, afinal, tínhamos que mostrar coragem.

Meu avô, João Cassimiro, era um contador de “causos”. Contava várias estórias fantasiosas de aparições, do cangaço, de caçadas e outras tantas bravatas que ouvíamos de olhos arregalados e ouvidos atentos. Uma história bastante conhecida das crianças da época, hoje adultos entre 30 a 50 anos falava de uma clarineta mágica, uma clarineta cantante, que nunca ninguém viu mas que ele jurava existir e nos prometia dar uma, se fizéssemos as coisas certas e por ele indicada e falássemos as palavras mágicas: clarineta, clarinetinha, quero que sejas só minha…Clarineta cantante eu quero te ganhar, vem clarineta, eu quero te tocar!

Por vezes ele se escondia e tocava um instrumento, que nada mais era que uma pequena sanfoninha de brinquedo. Ouvíamos aquele som e ele aparecia sorridente e sério perguntando quem tinha ouvido a clarineta cantante. Ficávamos em pavorosa e excitados, pedindo para ver a clarineta, pois todos queríamos ganhar a nossa.

Mas, ele dizia que a clarineta era mágica capaz de realizar desejos e esta só podia ser vista de dia. Se vínhamos pela manhã, ele dizia ser muito cedo. Mais tarde, o tempo já tinha passado e perdíamos a hora certa, e assim seguia nos enrolando com o som da clarineta inexistente e fantasiosa. Ela afirmava que alguns meninos do “Logradouro” já tinham ganho as suas. Queríamos as nossas também! Mas, o que sempre desejava mesmo era ir caçar onças com ele.

Meu avô por vezes saia muito cedo e passávamos o dia inteiro sem vê-lo. Saía aos açudes com seu jumento encangado, onde ele armava até quatro depósitos de água. Chamávamos o jumento de “seu feioso”. Ao voltar, no fim do dia, ela dizia ter ido caçar onças “nas areias” e falava das brigas que tivera com o bicho feroz e perigoso. Imaginava cenas heróicas ao enfrentar a fera, armado de uma faca de 12 polegadas que ele sempre levava na cintura e uma espingarda “soca-soca”, que possuía, além de um velho bacamarte. Havia duas ou três destas espingardas em casa e disputávamos sua posse.

Comprávamos chumbinhos na bodega do “tio” Expedito, espoletas, alguma pólvora, trapos para serem usados como buchas e saiamos dizendo ir caçar. Nunca pegamos nada, mas gostoso mesmo era armar as espingarda e atirar, atirar de verdade, igual ao que víamos nos cinemas e filmes de bang-bang, muito comum na época, ouvir o forte estampido da explosão da pólvora, sentir o seu cheiro e ver a fumaça subir. Sempre pedia ao meu avô para ir caçar onças com ele. E ele prometia que iríamos “no outro dia”, de manhã bem cedo e que ele me acordaria. Mas ao me levantar pela manhã, ele já tinha saído. Dizia ter me chamado e que eu não acordava, pois tinha o sono pesado…

Ficava frustrado, prometendo a mim mesmo que nesta noite não dormiria, veria o dia amanhecer e sairíamos para caçar. Mas, com o passar das horas, o sono sempre me vencia!, Meus olhos ficavam pesados e eu adormecia mais uma vez e outra vez. Caçada mesmo, só nos meus sonhos infantis. Não foram muitas as vezes que fui ao sertão na minha infância. Deveria ter ido mais, aproveitado mais. Só hoje me dou conta das coisas que perdi, que deixei para trás, mas mesmo assim, vivi coisas que menino nenhum da cidade grande jamais imaginou.