Do Folhape

A man holds his child as families, who fled Ukraine due to the Russian invasion, wait to enter a refugee camp in the Moldovan capital Chisinau on March 3, 2022. (Photo by Nikolay DOYCHINOV / AFP)
Foto: Nikolay Doychnov / AFP

Mais de 1,7 milhão de ucranianos fugiram de seu país desde o início da invasão pela Rússia, em 24 de fevereiro, segundo dados atualizados das Nações Unidas. Milhares de mulheres, crianças e idosos se amontoam, todos os dias, na estação de trem de Lviv, a maior cidade do Oeste da Ucrânia e ponto final para quem deseja entrar na União Europeia.

Por determinação do governo, os homens de 18 a 60 anos não podem deixar o território ucraniano e são obrigados a pegar em armas contra os russos. Por outro lado, há também notícias de que soldados inimigos estariam se rendendo sem resistência — a imagem de um deles chorando ao ligar para a mãe rodou o mundo.

Toda guerra tem muitos lados. Mas há, talvez, um menos visível, que consome por dentro, em silêncio: os efeitos dessas situações extremas na mente, deflagrando, de uma hora para outra, ansiedade, depressão, distúrbios comportamentais e estresse pós-traumático. Os impactos, diretos ou indiretos, da violência de uma guerra são brutais, afirmam especialistas.

— Essas pessoas [os ucranianos] estão passando por um evento traumático incapacitante. É o que chamamos de “estresse tóxico elevado”. Quando o corpo é submetido a um estresse constante, nesse caso a ataques contínuos, bombardeios e insegurança, a frequência cardíaca dispara e diversos tipos de reações químicas no corpo são ativadas continuamente, gerando uma repetida resposta ao estresse corporal — explicou ao Globo Theresa Betancourt, professora da Escola de Serviço Social da universidade Boston College e especialista em saúde mental para jovens afetados pela guerra.

A existência de traumas provocados pela experiência de guerra ou de conflito armado são velhos conhecidos até das pessoas comuns — há uma vasta cartela de filmes sobre o assunto, por exemplo, como o popular “Rambo — programado para matar”, de 1982, imortalizado por Sylvester Stallone.

Mas não há no campo da psicologia ou da psiquiatria nenhum instrumento capaz de avaliar precisamente o quão profundo é o trauma de uma pessoa ou quais situações são mais traumatizantes que outras nesses contextos, afirma Joop de Jonge, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade de Amsterdã e autor do livro “Trauma, War and Violence: Public Mental Health in Socio-Cultural Context” (Trauma, Guerra e Violência: Saúde Mental Pública em Contexto Sócio-Cultural, sem tradução para o português).

“O problema tem dimensões enormes, envolve famílias, comunidades, perdas materiais… Mas o que sabemos pela literatura é que uma das coisas mais dramáticas para as crianças, por exemplo, é quando os próprios pais estão traumatizados”, afirma Jong. “A reação de uma mãe ou de um pai ao estresse traumático não tem consequências psicológicas e psiquiátricas apenas para eles, mas também para seus filhos.”

Segundo Betancourt, a ciência é muito clara quanto às evidências de que a exposição ao estresse tóxico afeta a arquitetura do cérebro em desenvolvimento da criança. Ainda de acordo com a especialista, a situação é agravada se não houver esse papel amortecedor de figuras primárias de apego, como os pais ou outros entes queridos. As consequências, afirma, “são duradouras”, com impactos diretos na saúde mental e nos resultados sociais dessas pessoas, incluindo sua capacidade de se sair bem na escola e economicamente.

Um estudo apresentado em 2019 por pesquisadores norte-americanos dá conta de que passar por uma situação traumática pode, além de comprometer a saúde mental, causar danos biológicos. Eles analisaram a estrutura cerebral de sobreviventes do Holocausto e constataram que o estresse e o sofrimento levaram a uma redução significada da massa cinzenta dessas pessoas. A diminuição era ainda maior entre as que tinha 12 anos ou menos na ocasião do genocídio, disseram. O estudo revelou também diferenças substanciais nas estruturas cerebrais envolvidas no processamento de emoção, memória e cognição social entre os sobreviventes e indivíduos que não viveram esse trauma.

Num contexto de guerra, os riscos de desenvolvimento de transtornos mentais ou problemas de saúde são elevados, mesmo depois de findado o conflito e alcançada uma sensação de estabilidade de longo prazo, afirma Theresa Betancourt, do Boston College. Em situações como essas, as taxas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, abuso de substâncias e ansiedade sobem, às vezes, 30%, segundo Jong.

Entre 50% e 75% das pessoas que viveram uma experiência de guerra também sofrerão com pesadelos constantes, flashbacks do conflito, sensação constante de vigília e atenção, insônia ou ansiedade, afirma o especialista holandês. Todos esses sintomas são enquadrados no que a ciência chama de “reação aguda ao estresse”, que ainda inclui se assustar facilmente com sons abruptos, completa Jong.

No caso de homens adultos, há ainda consequências mais imediatas, como o alcoolismo e o abuso de substâncias.

“O alcoolismo é um problema em qualquer lugar do mundo onde você tenha homens reunidos, especialmente em uma guerra”, diz. “É claro que se houver um ataque hoje e outro amanhã, é bom poder beber algo depois para relaxar. Mas se você está sob ataque contínuo, você tende a usar o álcool como uma forma de conviver com o medo e a ansiedade, mas isso facilmente evolui para abuso de substâncias como cocaína, e o abuso de substâncias é sempre um grande problema.”

Em muitos casos há também um problema transgeracional. Depois de uma guerra, é muito comum que os pais não falem sobre o conflito, para não expor as crianças às histórias. Mas há também aqueles que falam o tempo todo sobre a guerra. Em ambos os casos, as crianças sentem que não recebem a atenção devida . Também pode ocorrer de os pais nunca serem agressivos com seus filhos, temendo a agressividade da guerra, ou de serem violentos o tempo todo.

“Quando os pais são traumatizados, eles podem traumatizar a próxima geração. Mas o que a próxima geração sofrerá com os traumas dos pais nem sempre é negativo. Às vezes pode gerar um sentimento de resiliência”, afirma Jong. “A narrativa de guerra dos ucranianos, que sofreram por dois séculos nas mãos do Império Russo, da União Soviética, do regime nazista e agora nas de Putin, por exemplo, é a da resistência.”