Do Folha de Pernambuco

 

Conta-se que, em julho de 1822, o príncipe regente do Brasil, que administrava a antiga colônia portuguesa na América do Sul desde o retorno do seu pai, o rei João 6º, à Europa, se dirigiu até uma das janelas do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, e bradou: “Pernambuco é nosso!”.

Dom Pedro tinha acabado de receber a resposta da junta que governava a principal província “do Norte” ao pedido encaminhado por ele de lealdade à regência e adesão à causa independentista. Na mensagem, o grupo liderado por Gervásio Pires Ferreira, que hesitava para tomar uma posição, manifestava “protestos de obediência” ao príncipe que, três meses depois, se tornaria imperador.

O episódio está registrado no livro “1822”, do jornalista e escritor Laurentino Gomes, e ilustra o papel de Pernambuco no processo conhecido como Independência do Brasil, que completa 200 anos na próxima quarta-feira (7).

Naquele momento marcado por conflitos e tensões políticas de um lado a outro do Atlântico, o hoje Estado nordestino, por vezes descrito como “a primeira província a se separar de Portugal”, um ano antes das demais, vivenciou esse processo de uma maneira bastante particular – e foi determinante para o projeto de nação que se formava a partir dali.

Embora muito se fale dos movimentos entre Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, não é possível abordar esse assunto de forma completa sem lembrar que parte do que se entende (e também do que se deseja) do Brasil atual nasceu aqui no século 19.

Às vésperas do Bicentenário da Independência, a Folha embarca em uma viagem no tempo e resgata a memória de um Pernambuco que se pretendia revolucionário e contribuiu para a construção do País. Uma história que pode ser dividida em três capítulos.

A Revolução dos Padres
Esse é o segundo nome pelo qual ficou conhecido a rebelião que aprendemos na escola como Revolução Pernambucana. Idealizada por uma elite intelectual que incluía aristocratas e militares, além de religiosos, como Frei Miguelinho, a insurreição que eclodiu em março de 1817 foi a única revolta local a conseguir que uma capitania ou província conquistasse a separação, formando um governo próprio – ainda que por apenas 75 dias. Tudo começou em 1808, com a chegada da corte portuguesa, que fugia das guerras napoleônicas na Europa com a ajuda da Inglaterra.

“Quando a família real aporta no Rio de Janeiro, começa um projeto de modernização da cidade”, conta o professor de História Fernando Vieira.

“Eles criam lá um jardim botânico, uma biblioteca, o Paço e o Banco do Brasil. Para cobrir essas despesas, a Coroa passa a cobrar vultosos impostos. E isso vai afetar diretamente as oligarquias nordestinas, porque há uma crise na economia açucareira, que, desde a expulsão dos holandeses em 1654, entra em decadência diante da concorrência com as Antilhas. Junto a isso, acontece, em 1816, uma grande seca, o que causa um enorme prejuízo. No Recife, por exemplo, faltavam alimentos básicos como farinha e feijão”.

Ao receber denúncia de que havia uma conspiração em andamento, o governador da época, Caetano Pinto, exigiu “obediência e vassalagem” e, sendo ignorado, mandou prender os envolvidos. A revolta estourou no dia 6 de março, quando militares implicados no movimento, entre eles José Barros de Lima, o “Leão Coroado”, foram levados ao Forte das Cinco Pontas.

Na resistência à prisão, os rebeldes tomaram o quartel, declarando a criação de uma junta provisória para a instauração de uma república. Entre as medidas tomadas pelo novo grupo no poder, estava a soltura de presos políticos e criminosos, liberdade de imprensa e consciência e tolerância religiosa. Embora defendida por uma parte das lideranças, a abolição da escravatura acabou ficando para “o futuro”.

A repressão, depois que as tropas reais conseguiram dissolver a recém-nascida república em 18 de maio, foi dura. Figuras populares, como o Frei Miguelinho e o Leão Coroado, foram executadas e 150 pessoas foram detidas e levadas à prisão em Salvador. Dentre os resquícios daquele país Pernambuco, restou a bandeira, hoje usada como bandeira oficial do Estado.

De Goiana a Beberibe
Com o passar do tempo, a pressão vinda do além-mar se intensificou. Com Napoleão derrotado desde 1815, a volta de dom João 6º, agora monarca do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, era exigida no outro lado do Atlântico.

Em 1820, se deu a Revolução Liberal do Porto, que, entre outras medidas, determinava o retorno do rei, o fim do absolutismo mediante a aprovação de uma Constituição e a recolonização do Brasil. Além disso, as Cortes do Porto demitiram todos os governadores régios, autorizaram a realização de eleições nas províncias e anistiaram todos os remanescentes de 1817, que estavam presos na Bahia e puderam retornar a Pernambuco.

“Então, se reúnem as Câmaras do Recife e de outras localidades, como Sirinhaém, e elas, com medo de um levante dos escravos, elegem o próprio governante régio da época, o general Luís do Rego Barreto. Mas o pessoal de 1817 não aceita a eleição e decide montar um outro governo, a Junta de Goiana”, narra o historiador e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Marcus Carvalho.

A nova junta governativa partiu da Mata Norte e, após alguns conflitos, marchou até o Recife, onde foi assinada a Convenção de Beberibe, que reivindicava a autonomia política da província pernambucana. Para o cargo ocupado por Luís do Rego, foi eleito Gervásio Pires, que tinha participado da Revolução de quatro anos antes.

Independência e Confederação
Eternizado como o nome da rua que cruza a avenida Conde da Boa Vista, Gervásio Pires governou Pernambuco por apenas um ano. As tensões entre Lisboa e Rio de Janeiro aumentavam. Nomeado regente após a partida do pai, dom Pedro recusou a convocação das Cortes para retornar a Portugal e levou à frente as movimentações para evitar que o Brasil voltasse a ser uma colônia. Nesse processo, a declaração de independência tornou-se inevitável, e os emissários do príncipe procuraram as províncias para que jurassem lealdade a ele.

Naqueles meados de 1822, havia três possibilidades sobre a mesa: permanecer sob o domínio de Portugal, aderir à independência unificada em torno do Rio de Janeiro ou declarar separação de ambos, instalando um governo próprio como havia ocorrido em 1817.

Sem confiar na ideia de que a independência liderada por dom Pedro traria a desejada autonomia política, Gervásio Pires evitava tomar uma posição e o fez, em julho, de forma tímida, sob pressão de parte dos proprietários rurais, que já se articulavam com o conselheiro regencial José Bonifácio para derrubá-lo. Em setembro, veio a Independência, dom Pedro assumiu o Império e Gervásio Pires foi deposto, dando lugar à conservadora Junta dos Matutos.

Cronologia da Independência do Brasil com as rebeliões de Pernambuco

Porém, os ideais defendidos pelos revoltosos de 1817 continuaram de pé. Em 1824, depois que o imperador dissolveu a Constituinte, centralizando o poder nas próprias mãos, a oposição não aceitou a vinda de um novo governante nomeado por ele e se insurgiu com mais uma rebelião: a Confederação do Equador, projeto de federação que reuniria, além de Pernambuco, as províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

A revolta terminou com uma repressão violenta, resultando no fuzilamento de Frei Caneca e na redução do território pernambucano, que perdeu a comarca de São Francisco, transferida, inicialmente, para Minas Gerais e, depois, para a Bahia.

Os legados de Pernambuco
“Pedra no sapato” dos planos de um Brasil unificado, fundamentais para a manutenção do poder dos Braganças aqui e na Europa após uma inevitável independência, as rebeliões pernambucanas do século 19 anteciparam muitas das medidas tomadas décadas depois na construção da República Federativa que vigora atualmente.

“Realmente, em Pernambuco é onde começa a ideia forte de cidadania, igualdade perante a lei e mais autonomia aos poderes locais. É uma questão que até hoje está sendo disputada. Um problema de agora, por exemplo, é a concentração do orçamento no Governo Federal e no Congresso. E como ficam os estados?”, analisa o historiador Marcus Carvalho.

Sandro Vasconcelos, historiador do Museu da Cidade do RecifeSandro Vasconcelos, historiador do Museu da Cidade do Recife (Foto: Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco)

“O Brasil, em 1822, se torna uma anomalia”, complementa Sandro Vasconcelos, historiador do Museu da Cidade do Recife, localizado no mesmo Forte das Cinco Pontas onde se iniciou a rebelião de 1817 e o líder mais famoso da Confederação do Equador, o Frei Caneca, foi fuzilado em 1825.

“Todos os países da América que iniciaram o processo de independência optaram por um regime republicano enquanto o Brasil manteve a estrutura ligada à aristocracia portuguesa. Se formos observar a partir de uma tentativa de ruptura com o status quo político, nós fazemos essa associação [entre Pernambuco e a Independência]. Mas tem pessoas que até hoje fazem a crítica e questionam se nós realmente passamos por esse processo de independência no âmbito nacional”.