Foto: Maynor Valenzuela/AFP

Por Diário de Pernambuco

Há 16 anos no comando da Nicarágua, o presidente Daniel Ortega deu um passo a mais para reprimir a dissidência, sufocar focos de insatisfação dentro da Polícia Nacional e reforçar o próprio poder. Controlada pelo partido governista Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), a Assembleia Nacional aprovou reformas da Constituição Política e da Lei Orgânica da Polícia.

De acordo com especialistas e opositores, as duas medidas, que tramitaram em caráter de urgência, legalizam o controle absoluto de Ortega sobre a Polícia Nacional e eliminam o caráter profissional, civil, apolítico e aparidário da instituição.

O novo texto do artigo 97 da Constituição Política estabelece que “a Polícia Nacional é um corpo armado, subordinado ao presidente da República, encarregado de proteger a vida dos habitantes do país; preservar a ordem social e interna; garantir a segurança das pessoas e das instituições; exercer a prevenção, a perseguição e a investigação do delito; e prestar auxílio necessário às autoridades civis e judiciais para o cumprimento do desempenho de sua funções”.

Ele começará a vigorar na próxima Legislatura, em 2024, após ratificação. Por sua vez, a nova Lei Orgânica da Polícia determina que aqueles policiais que descumprirem seus deveres ou que desertarem estarão sujeitos a pena de até três anos de prisão.

Diretora do Centro de Estudos Transdisciplinares da América Central, a nicaraguense Elvira Cuadra disse que as reformas aprovadas mudam a natureza da Polícia Nacional. “Elas transformam uma instituição nacional em aparato de repressão e de controle. Também aumentam as ameaças e pressões sobre os policiais para que não desertem”, afirmou ao Correio. Na análise de Cuadra, as mudanças extinguem o caráter civil da Polícia Nacional, que passa a ser apenas um corpo armado. “São um passo adiante na radicalização autoritária da Nicarágua”, alertou.

Por sua vez, Enrique Saenz, analista político nicaraguense exilado na Costa Rica e ex-deputado da Assembleia Nacional, classificou as duas reformas como “palhaçada”. “Com lei ou sem lei, com reformas ou sem reformas, a Polícia Nacional encontra-se sob controle absoluto de Ortega há quase uma década”, ironizou, por telefone. “Ao longo dos anos, Ortega mostrou que não respeita a Constituição, as leis ou os compromissos internacionais. A Polícia Nacional se converteu em um instrumento repressivo. Isso não é mais do que uma cortina de fumo do regime”, acrescentou.

Saenz adverte que Ortega busca levar a repressão para dentro da própria Polícia Nacional e se antecipar a repercussões, no interior da instituição, das recentes deserções de oficiais que fugiram para os EUA. “A reforma da Constituição é pura pantomima”, criticou.

Ele acusou Ortega de encabeçar uma máfia que se apoderou da totalidade das instituições do Estado, incluindo os corpos repressivos, embolsou uma”formidável fortuna” e mergulhou na impunidade. “Não existe, por aqui, um projeto político, de mudança, de esquerda ou progressista. O que ele tem implantado é um Estado mafioso. Com o dinheiro, essa máfia corrompe a cúpula do Exército, da Polícia Nacional e do Poder Judiciário. Ortega não é uma ditadura, mas uma máfia que controla a totalidade do Estado e deseja manter-se no poder a ferro e fogo.”

Félix Maradiaga, principal líder da oposição na Nicarágua, explicou ao Correio que a reforma dentro da Polícia Nacional tem sido discutida dentro dos círculos sandinistas desde abril. “Ortega vem fazendo uma série de mudanças que implicam na remoção de oficiais da Polícia Nacional sem nenhuma explicação e na reincorporação de antigos oficiais, que estavam aposentados.

Membros do Partido Sandinista, que tinham uma posição política de liderança, foram excluídos, recentemente, do círculo íntimo de Ortega. Isso quer dizer que, dentro da Polícia Nacional, existe uma corrente que não está muito contente com Ortega; inclusive, em janeiro passado, o ex-comissário Adolfo Marenco, encarregado da inteligência policial, foi investigado em um processo de auditoria interna”, afirmou.

Para Maradiaga, Ortega também busca acelerar um novo modelo político policial, o qual desmonta a reforma da polícia dos anos democráticos da Nicarágua. “A Polícia Nacional nasceu em 1979 com o nome de Polícia Sandinista. Em sua origem, ela se sujeitava ao partido político e ao governo da Frente Sandinista. Entre 1990 e 1996, houve várias transformações.

A polícia mudou de nome e passou a ser subordinada a um ministro civil. Isso permitiu à Assembleia Nacional (Parlamento) ter um maior controle para fazer auditorias na instituição, que era menos militar e menos política”, observou o opositor. Ele acredita que Ortega busca retomar o velho modelo da Polícia Sandinista. “Nesse modelo, a polícia é mais política e tem vínculos mais próximos com os sandinistas, além de não se subordinar a autoridades civis”, disse Maradiaga.

Sanções severas
Ainda de acordo com ele, Ortega ordenou a aplicação de sanções mais severas à insubordinação policial. “Qualquer chefe policial que fizer qualquer crítica ao governo de Ortega poderá ser condenado a vários anos de prisão”, afirmou Maradiaga.
A reforma policial coincide com várias deserções ocorridas, recentemente, entre os oficiais de baixas patentes. “Alguns oficiais da polícia renunciaram e chegaram aos Estados Unidos nos últimos dias. Também é importante lembrar que, em 9 de fevereiro passado, Ortega libertou 222 presos políticos, os deportou para os EUA e retirou-lhes a nacionalidade. Havia dois policiais nesta leva”, lembrou o nicaraguense, que figura nas pesquisas de opinião como a principal liderança da oposição.
O medo impede muitos opositores de falar. “Aqueles de nós, que permanecemos na Nicarágua, não podemos nos pronunciar sobre nenhum tema político que diga respeito ao governo. Somos uma oposição silenciada. Espero que me compreenda e, por favor, não cite meu nome”, afirmou um deles, ao rejeitar um pedido de entrevista do Correio. Ele prefere não especular em torno de uma suposta “grande insubordinação” dentro da Polícia Nacional. “O que temos são pequenas mostras de insatisfação, porém, muito preocupantes para Daniel Ortega”, disse.
DUAS PERGUNTAS PARA 
 
FÉLIX MARADIAGA, ex-secretário-geral do Ministério da Defesa, ex-preso político e principal líder da oposição na Nicarágua
Com a aplicação de sanções a oficiais desertores, Ortega busca tornar a Polícia Nacional da Nicarágua muito mais repressora e silenciar a oposição?
Efetivamente. A Polícia Nacional tem sido a principal instituição à frente da repressão, muito mais do que o Exército da Nicarágua. As reformas policiais buscam dar maior eficiência repressiva à Polícia frente ao cenário de novos protestos e torná-la mais funcional em seu caráter de polícia política. Na condição de ex-preso político, depois de ter sido interrogado mais de 400 vezes, durante 611 dias no cárcere, todos os meus interrogatórios foram políticos. Jamais me fizeram perguntas legítimas sobre delitos. As perguntas eram sobre minha ideologia, minha opinião em relação aos EUA, e por que eu tinha escrito artigos opinativos nos meios de comunicação. Pude confirmar que a Polícia Nacional da Nicarágua é, total e completamente, política.
O que é ser um opositor na Nicarágua?
Hoje, ser opositor na Nicarágua implica em ser um cidadão com morte civil, que não tenha direito à nacionalidade ou à propriedade, e que não tenha nenhum direito cívico ou político. Ser opositor significa ser uma pessoa que vive permanentemente ameaçada de ser presa. Estive no cárcere durante 611 dias. Depois, fui deportado para os Estados Unidos, em 9 de fevereiro. As autoridades da Nicarágua retiraram minha nacionalidade. Hoje, sou um apátrida. (RC)
Bispo é libertado e preso 48 horas depois
Em 10 de fevereiro passado, o monsenhor Rolando Álvarez, bispo de Matagalpa (centro-oeste), preso e condenado pela Justiça da Nicarágua a 26 anos de prisão por “danos à integridade nacional”. Quatro meses depois, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) exigiu a “libertação imediata” do religioso. Em recente viagem à Itália, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que conversaria com o homólogo nicaraguense, Daniel Ortega, para pedir a soltura do bispo.
“A Igreja está com problemas na Nicarágua, porque tem padre e bispo presos, e a única coisa que a Igreja quer é que a Nicarágua libere o bispo”, disse Lula, que teria prometido ao papa Francisco dialogar com Ortega sobre o tema. Ontem, circularam rumores de que Álvarez teria deixado a prisão. O jornal Confidencial, de Manágua, publicou que negociações entre o Vaticano, a Conferência Episcopal da Nicarágua e o regime Ortega fracassaram. Segundo o diário, Álvarez chegou a ser solto, no início desta semana, mas voltou a ser trancafiado na cela de segurança máxima da prisão Modelo, na manhã desta quarta-feira (5/7).
A advogada nicaraguense Martha Patricia Molina — autora do estudo Nicarágua: uma Igreja perseguida? — contou ao Correio que soube, por meio de fontes do sistema judicial, que o bispo está com a saúde debilitada e que o melhor seria retirá-lo do sistema penitenciário. “No entanto, elas temem erguer a voz e pedir a libertação de Álvarez, ante possíveis represálias nefastas da ditadura”, comentou. “Na realidade, as autoridades nicaraguenses o sequestraram por sua voz profética e por sempre falar com a verdade e à luz do Evangelho.”
Molina denuncia que a prisão e o julgamento do bispo foram marcados por irregularidades. “O monsenhor Álvarez foi sequestrado por agentes da polícia orteguista e levado a um local desconhecido, em violação aos seus direitos. A detenção somente pode ocorrer com mandado judicial, exceto em caso de flagrante delito”, afirmou. “Durante os 135 dias de sequestro, ele não foi informado das acusações. Quarenta e oito horas depois da detenção, Álvarez teria que ser colocado em liberdade. O princípio da presunção de inocência jamais foi respeitado. O religioso sempre foi tratado como delinquente. Além disso, o julgamento não foi nem oral, nem público.”
O analista político e ex-deputado nicaraguense Enrique Saenz acredita que a prisão de Álvarez é fruto da “vocação totalitária de Ortega”. “Ele não admite que nenhuma pessoa, organização ou atitude resistam ao seu afã pelo poder. A população da Nicarágua é religiosa e de maioria católica. Dentro da Igreja, há vozes que têm influência sobre a sociedade, uma palavra viva e vibrante. Ortega decidiu, então, encarcerar o bispo Álvarez, que não quis se submeter à vontade do regime e sair do país.”
Freiras
No último domingo (2/7), o regime de Ortega decidiu não renovar a permissão de residência e os documentos de quatro freiras brasileiras que administravam a casa da Fundação Fraternidade dos Pobres de Jesus Cristo, em León (noroeste). As religiosas foram expulsas da Nicarágua e recebidas pela Igreja Católica de El Salvador. “A polícia sandinista as levou à meia-noite, como se fossem delinquentes. Isso é parte da perseguição contra a Igreja Católica”, disse Molina. O Ministério do Interior informou que a ONG, registrada em 2019, foi declarada ilegal por “descumprimento das leis” — o mandato de seu conselho teria expirado em fevereiro de 2021.