Da Folha de PE

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou que seu país está sozinho pela primeira vez na sua história recente no desenvolvimento de uma tecnologia militar. No caso, mísseis hipersônicos. “Estamos numa situação única em nossa história contemporânea, onde eles estão tentando nos alcançar. Nenhum país tem armas hipersônicas, ainda mais com alcance intercontinental”, afirmou o russo.

A fala de Putin ocorreu durante reunião com a cúpula militar russa na terça-feira (24), quando ele anunciou a entrada em serviço até o fim do ano do primeiro regimento a operar o planador hipersônico Avangard.

Desde o começo deste ano, a Rússia faz patrulhas de interceptadores MiG-31 armados com o míssil balístico hipersônico Kinjal, o primeiro operacional do mundo. Putin também anunciou o desenvolvimento de uma versão terrestre do míssil antinavio Tsirkon.

Analistas militares são usualmente céticos com tais anúncios, por serem dificilmente verificáveis e Putin ser um mestre do marketing político da ameaça. Mas há consenso de que a Rússia está sim à frente dos EUA e da China, que também desenvolvem esse tipo de armamento.

Todas essas armas são consideradas parte do futuro da guerra. São hipersônicas, ou seja, voam acima de Mach 5 (cinco vezes a velocidade do som –ou 6.174 km/h, enquanto um avião de carreira voa na casa dos 850 km/h). Hoje elas já existem na forma das ogivas nucleares lançadas por mísseis intercontinentais gigantescos, os ICBM. Só que elas atingem velocidades enormes, na casa de Mach 30, apenas ao cair em trajetória balística.

A nova geração de armas a que se refere Putin é diferente: todas preveem manobras enquanto voam. “Elas podem penetrar qualquer sistema de defesa”, disse o presidente, repetindo uma retórica triunfal iniciada no discurso de 2018 em que revelou as armas.

O Pentágono já alertou o Congresso americano que, se forem verdadeiras as poucas especificações disponíveis, os atuais sistemas antimísseis não terão como impedir um eventual ataque. Muito disso é guerra de propaganda. Na realidade, nenhum sistema antimíssil é perfeito contra um ataque maciço de ogivas nucleares transportadas por ICBMs. Simulações preveem a derrubada de alguns mísseis, com eficácia baixa.

A questão é psicológica e, no caso de mísseis de menor alcance, de efeito prático mesmo num cenário de guerra contido, não-nuclear. Em agosto, o secretário de Defesa americano, Mark Esper, disse que o projeto tocado pela Lockheed para um míssil hipersônico talvez demore dois anos para testar a arma.

Já a Rússia anunciou no fim dos anos 2000 que investiria em tais modelos, dada a insistência norte-americana em desenvolver e instalar sistemas antimísseis na Europa – supostamente contra ogivas iranianas, mas que os russos viam como focadas contra si.

Por outro lado, os testes com os mísseis hipersônicos parecem sob controle. No caso do Avangard (vanguarda, em russo) que é um planador lançado por um ICBM, o alcance é semelhante ou maior do que os mísseis intercontinentais atuais e a carga pode ser nuclear, de até 2 megatons. Em teste, chegou a Mach 27.

Já o Kinjal (punhal, em russo) é um míssil balístico manobrável, com Mach 10 de velocidade e 2.000 km de alcance. Hoje, nenhuma arma lançada de avião tem tal desempenho. Ele pode levar 500 kg de explosivos ou uma ogiva nuclear reduzida.

O Tsirkon (zircão, em russo), por sua vez, é um míssil de cruzeiro antinavio, o que significa que foi desenhado para voar baixo em manobras, evitando radares. Atualmente, essas armas são subsônicas, enquanto ele teoricamente voa a Mach 8 por até 400 km.

Putin não especificou, mas hoje o Tsirkon é testado de submarinos e navios. Se for instalado em solo para ataques a alvos terrestres, é uma resposta ao fim da proibição de mísseis de alcance intermediário que havia, em solo europeu, no tratado INF –que os EUA deixaram neste ano, anulando um dos maiores instrumentos do fim da Guerra Fria com a então União Soviética.

Para além da retórica triunfalista, há problemas reais para Putin. Também em agosto, houve uma explosão que matou cinco engenheiros nucleares numa base flutuante da Marinha do país no Ártico, liberando pequena quantidade de radiação. Ninguém assumiu, mas tudo indica que foi a explosão de um reator experimental de outra dessas armas secretas, o míssil de cruzeiro Burevestnik (russo para a ave marinha petrel).

Ele não é hipersônico, mas adota o conceito arriscado de usar energia nuclear para voar sem limite de autonomia. Mais seguro e em testes é sua versão subaquática, o drone submarino Poseidon, que prevê explosões devastadoras contra frotas ou portos.

Outro problema recente para o Kremlin foi a primeira queda, também na terça, do mais moderno avião russo, o caça Sukhoi-57. O modelo de testes voava perto da fábrica, em Komsomolsk-no-Amur (Extremo Oriente russo) quando apresentou defeito no controle de estabilidade, obrigando o piloto a ejetar-se. A aeronave é uma esperança de exportação para a Rússia, que encomendou 76 delas.

Há limitações práticas também em algumas situações envolvendo os mísseis hipersônicos. No caso do Tsirkon, uma rede eficaz de satélites é necessária para a guiagem, o que leva o conflito para o estágio seguinte: no espaço, como a criação do comando militar específico por isso pelo governo de Donald Trump indica.

Os russos têm uma boa cobertura, mas no caso dos chineses, que pretendem ter os modelos antinavio do tipo à disposição no teatro do Pacífico ocidental no futuro, isso é mais complicado.

Enquanto a corrida por armas manobráveis se desenrola, a Rússia não esqueceu dos confiáveis ICBMs. Está colocando em serviço a nova geração dos mais pesados mísseis do tipo, o RS-28 Sarmat, capaz de levar pílulas de Apocalipse em forma de até 15 ogivas nucleares independentes a praticamente qualquer canto do mundo.