Publicado às 05h13 desta terça-feira (28)

Por Flaviano Roqoe, cronista serra-talhadense

Os tempos de nostalgia mudaram, antes era preciso ir até os anos 80 ou 90, talvez até mais longe — para quem acreditou numa ascensão militar gloriosa dos anos 60 — e, assim, ansiar pela chamada “Terra onde canta o sabiá”. Nossos pais, não é à toa, enxergam uma vida melhor quando soltam o célebre “naquele tempo é que era bom!”. Entretanto, nesses últimos meses, tornou-se irrelevante discutir o passado, ao menos o passado longínquo, este já está fora de questão. Uma regra é certa, não adianta cantar o exílio e não ter memória. Não adianta cantar as palmeiras de Gonçalves Dias se não usamos árvores nativas do Sertão para enfeitar as fachadas de nossas casas. Esse é aquele tempo perfeito para reconhecer não sermos tão bons assim.

O Brasileiro, na sua constante falta de identidade, é um povo enamorado com o passado. Vivemos de recordações daquilo que nunca fomos e temos uma certa dificuldade em nos enxergar como uma civilização à altura das demais. Um sério embaraço, pois, no século anterior, ainda era preciso algumas décadas para produzir história, agora é tudo diferente. A noção de temporalidade nunca foi tão relativa, mal acabou 2019 e como o queremos de volta, não? Queremos o ontem como se ele tivesse ocorrido há muito tempo atrás.

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Sem muita demagogia, eu tenho sentido saudade de simplesmente ir à rua; de comer peixe no Bar do Raimundo; de ir ao banco sem tomar banho de álcool 70; de ter o vidro do carro aberto ao passar pelo viaduto da Avenida Triunfo; de me deixar ficar e contemplar a Igreja Matriz sem ter de fazer carreira; de caminhar pela cidade em paz. Enfim, sinto falta do simples, do dia a dia. Meu erro foi acreditar que tudo, da maneira como estava, era simplesmente normal. O mundo, já há algum tempo, é outro. E, inevitavelmente, temos que mudar, cambiar hábitos, rever necessidades, transformar nossas vidas.

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A despeito de muitos ainda acharem que vamos bem: à guisa de exemplo, a nossa Serra Talhada bateu mais de mil e quinhentos casos de COVID-19 e, na cabeça de boa parte dos conterrâneos, ainda é um tempo ordinário para fazer negócios. Não é ignorância, pois de falta de informação não sofremos, enquanto algumas cidades colocam seus diagnósticos embaixo do tapete, nossos números estão aí para todos verem; também receio de que a explicação não esteja na lógica implacável do empresariado, apta a vender água em tempo de chuva, a vender roupa de grife para ficarmos em casa… Não, o nosso caso é pior, simplesmente nos acostumamos a naturalizar absurdos. Por um paradoxo elementar: o mercado tem de seguir, pois ele quebra se não comprarmos aquilo do qual não precisamos.

Em quatro meses, tivemos tantos fatos, dados, mortes, sofrimentos, reviravoltas etc. passando dos grandes centros aos subúrbios, suficientes para marcar qualquer pessoa. E não adianta fazer comparação das mortes da nossa modesta cidade, quando contrastada com grandes centros globais, a matemática fria não explica o fenômeno da morte e as estatísticas são sempre menos precisas quando se conversa com quem máquina os dados.

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A pandemia está aí para nos revelar uma constatação básica: o nosso povo já não tinha passado; e, enquanto perdurar sem produzir memória, muito provavelmente também não terá um futuro que valha a pena. Na escala do tempo, meus amigos, estamos numa encruzilhada: para frente, praticamos o viralatismo à Nelson Rodrigues, nos colocamos como os últimos da fila; para trás, contraditoriamente, vemo-nos sempre mais grandiosos (mais cordiais) do que de fato fomos algum dia — e ultimamente nem isso.

Mas ainda tenho fé. Um dia vamos avistar essas palmeiras onde cantam os sabiás! Daqui pra lá, só uma coisa, para que não fiquemos como agora de mãos abanando: guardemos um pouco da memória do hoje.