Por Uol

Por 9 a zero — a unanimidade dos presentes —, o presidente Jair Bolsonaro sofreu, até agora, a sua mais importante derrota votada pelo pleno no Supremo em tempos de coronavírus, notando que três decisões individuais já tinham ido na contramão do seu achismo: uma de Marco Aurélio, uma de Roberto Barroso e outra de Alexandre de Moraes. Com o resultado da votação nesta quarta, está decidido na prática: Bolsonaro não tem competência para baixar um decreto tornando sem efeito decisões tomadas por governadores e prefeitos sobre o que pode e o que não pode funcionar em tempos de distanciamento social.

Desta feita, só não votaram contra a pretensão do Planalto Celso de Mello e Barroso. Não porque discordem dos outros nove: o primeiro não participou da sessão virtual, feita a distância, por motivos de saúde, e o segundo porque se declarou impedido. Dados votos anteriores da dupla, pode-se estimar que teria havido uma unanimidade de 11 a zero contra a vontade presidencial se tivessem votado. Nota à margem: estavam no prédio do tribunal apenas Dias Toffoli, que é o presidente, e Gilmar Mendes. Mas o que estava em votação? Prestem atenção porque há sutilezas nas coisas. O governo federal decidiu, por Medida Provisória, a 926/20, estabelecer quais serviços são e quais não são essenciais.

Mas o que estava em votação? Prestem atenção porque há sutilezas nas coisas. O governo federal decidiu, por Medida Provisória, a 926/20, estabelecer quais serviços são e quais não são essenciais em tempos de coronavírus. Por que isso é importante? Porque define, afinal de contas, o que pode e o que não pode funcionar a depender das urgências ditadas pela pandemia. O PDT recorreu ao Supremo por intermédio de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade contra a MP, sustentando que ela retirava a competência de Estados e municípios. E o que decidiu Marco Aurélio em caráter liminar no dia 25 de março?

Reconheceu, sim, a constitucionalidade da MP, mas foi claro a mais não poder: a competência federal para definir setores essenciais não altera a autonomia dos Estados e municípios para tomar as suas próprias decisões. Nessas questões, segundo dispõe o Inciso II do Artigo 23 da Constituição, a competência das três esferas é concorrente, a saber: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (…) cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.

Por isso, escreveu Marco Aurélio em sua liminar: “Presentes urgência e necessidade de ter-se disciplina geral de abrangência nacional, há de concluir-se que, a tempo e modo, atuou o Presidente da República – Jair Bolsonaro – ao editar a Medida Provisória. O que nela se contém – repita-se à exaustão – não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios.” Assim, a pretensão do PDT foi parcialmente acatada por Marco Aurélio em sua liminar, o que foi referendado agora pelo pleno. O presidente pode editar Medida Provisória a respeito, mas não pode impedir que prefeitos e governadores tomem suas próprias providências em suas respectivas esferas de competência. Ou seja: se Bolsonaro baixar um decreto, como ameaçou fazer, ele será derrubado pelo Supremo por afronta à Constituição.

Outra liminar, de conteúdo parecido, está em vigor, esta da lavra de Alexandre de Moraes. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para que a) o presidente fosse impedido de editar decretos sobre o funcionamento de serviços nos Estados e cidades; b) para que fosse obrigado a adotar um conjunto de medidas contra a expansão do coronavírus. Na decisão, Moraes rejeitou a segunda pretensão, mas acatou a primeira, com base no mesmo fundamento de Marco Aurélio. O dito “Mito” pode dar adeus a seu decreto.

Na sessão desta quarta, o ministro Gilmar Mendes observou que Bolsonaro pode, se quiser, demitir o minstro Luiz Henrique Mandetta, mas “não dispõe do poder para eventualmente exercer uma política pública de caráter genocida”. Notou Moraes: “A verdade é que, se há excessos das regulamentações estaduais e municipais, isso ocorreu porque não há até agora uma regulamentação geral da União sobre a questão do isolamento, sobre o necessário tratamento técnico científico dessa pandemia gravíssima que vem aumentando o número de mortos a cada dia”.

Ainda nesta quarta, Bolsonaro voltou a fazer proselitismo em favor do fim das medidas de isolamento social. Por enquanto ao menos, aja como quiser. Uma coisa ele sabe que não poderá fazer: dar um murro na mesa para decidir na marra que tudo volte à normalidade — aquela que seria a normalidade do morticínio em massa.