Uma volta ao passado para lembrar com saudades Zé MarcolinoPublicado às 13h32 deste domingo (4)

Por João Luckwu, poeta serra-talhadense

O “Momento Poético” de hoje retrata a nordestinidade do poeta Zé Marcolino. Nascido na cidade paraibana de Sumé e pernambucano por adoção, Marcolino foi um sertanejo de origem humilde, mesmo possuindo uma expressão séria, vozeirão grave de um caboclo nordestino era a suavidade em pessoa.

Inspirado nas cantorias de viola e nas prosas sertanejas, Marcolino foi um poeta que sempre valorizou as tradições nordestinas, suas crenças e seus costumes. Seus versos representam a relação homem-natureza com uma característica peculiar impregnada de nordestinidade. Nos versos da canção Fulô do Cumaru, Marcolino descreve a simplicidade e o perfume da “caboca” sertaneja:

Ô caboquinha!

Esse cheiro é mermo teu

É coisa que Deus te deu

Num é cheiro comprado não

Foi um capricho de ordem da natureza

Que fez tua buniteza

E despontou tua feição

Tua bagagem deixa o homem em ribuliço

Esse teu dengo teu feitiço

Num tem coisa marmió

Tem o mistério da fulô do cumaru

Do cheiro que vem de tu

Da força do teu suor

 

Morena doida me diz que é de famia

Que pissui as armadia

Desse coipo de muié

E tu já tem um caquiado andar sereno

Confiada no veneno

Que nem cobra cascavé

No poema intitulado Tempo de Criança, o poeta faz uma viagem relembrando a sua infância:

 

Vou dar uma volta no passado

Pra rever o meu tempo distante

Vou brincar de criança pra ver

Se espanto essa dor cruciante

Só porque hoje sou grande

Essa coisa me aperta e me rói

Vendo o mundo de um jeito real

Não suporto essa dor que me dói

 

Na lembrança me embalo e vou ver

O lugar onde pequeno vivi

Aquelas brincadeiras de menino

Aquela casinha onde eu nasci

A burrica de pau de umburana

A cadência do meu berimbau

Vou jogar a minha carrapeta

Vou montar meu cavalo de pau

 

E depois desse belo passeio

Pelo mundo em que tive em criança

Eu não sei como vou resistir

O efeito da grande mudança

 

Vou baixar a cabeça sentindo

Quanto bole com a gente a idade

Depois volto pro mundo em que estou

Para me alimentar da saudade

Uma volta ao passado para lembrar com saudades Zé Marcolino

Relembrando a vida na roça, Marcolino descreve no poema Saudade Imprudente a simplicidade da vida no sertão:

 

Oh! que saudade imprudente

No meu peito martelando

Quando estou só me lembrando

Da minha vida na roça

 

Quando alegre um rouxinol

Cantava pelo arrebol

Quando centelhas de sol

Penetravam na palhoça

 

Minha casa era de arrasto

Frente virada pro norte

Pra ser feliz, pra dar sorte

Pra não se dá coisa ruim

 

Parece aquilo eu tá vendo

Pela lembrança, doendo

E a saudade trazendo

Tudo pra perto de mim

 

Conversa sem protocolo

De fácil vocabulário

Sem precisar calendário

Eu fazia anotação

 

Na minha imaginação

Eu achava tão comum

Contar mês de trinta e um

Na dobra da minha mão

 

Desde cedo, na sua terra natal, Marcolino se encantou pela música e pela poesia, onde costumava cantar músicas tanto de sua autoria como de outros autores, em especial as canções de Luiz Gonzaga e sonhava um dia em ter suas composições gravadas pelo Rei do Baião. Após escrever diversas cartas para o mestre Luiz Gonzaga sem receber respostas, teve a oportunidade de conhecê-lo durante uma apresentação na cidade de Sumé, na ocasião apresentou-lhe suas composições e a partir desse encontro firmaram uma parceria de sucesso.

Composições de Zé Marcolino como Cacimba Nova, Numa sala de reboco, Cantiga do vem-vem, Fogo sem fuzil, Quero chá, Sertão de aço, Serrote agudo, Pássaro carão, A dança do Nicodemos, Pedido a São João, Caboclo nordestino, Bota Severina pra moer, dentre tantas outras fizeram sucesso na voz de Luiz Gonzaga. Diversos cantores como Flávio José, Elba Ramalho, Maciel Melo, Dominguinhos, Irah Caldeira, Chico César, Assisão, Santanna, Quinteto Violado, Genival Lacerda, Fagner dentre outros também fizeram sucesso com as composições de Zé Marcolino.

O poeta Onildo Barbosa assim descreveu o poeta Zé Marcolino:

(….)

Eu te vejo como astro

E te ouço como um sino

Tu és a voz do agreste

Meu cantador nordestino,

Flor do campo ventania,

Meu favo de poesia

Tu és José Marcolino

(….)

No mesmo sentido segue o poeta João do Serrote Preto:

Um poeta maior que a estatura

Um gigante na arte do rimar

Diferente no jeito de versar

Desenhava o Sertão numa escultura

Impossível saber o que é cultura

Desprezando as canções desse poeta

Sua obra restou meio incompleta

Por razões inconclusas do destino

Quando ouço as canções de Marcolino

O meu ser se enaltece, se completa!

 

Mas atendendo a um chamado precoce do divino, Marcolino sofreu um grave acidente automobilístico e nos deixou no dia 20 de setembro de 1987. Curiosamente, sua passagem terrena teve fim na própria estrada que transcreveu com divina maestria:

 

Seu moço, eu sou a estrada

Que você vive a pisar

Sem a curiosidade

De nem uma vez pensar

Que eu sou a passagem das coisas

Nas devidas direções

Que seguem suas funções

Cada uma em seu lugar.

 

É por mim que se vai tudo

Mensagem do mal e do bem

Os outros resolvem as coisas

Você resolve também

Eu, lentamente aceitando

Pelo direito e a razão

 

No corpo imenso da terra

Eu sou um traço no chão

E no livro aberto da vida

Sou ponto de exclamação.

 

Se às vezes ganho uma roupa

Que tem o nome de asfalto

É pra o longe vir pra perto

Ficando a distância um salto

 

Dão a mim, brilha nos outros

E não me serve a lordeza

Eu sou o centro econômico

Que leva e traz a riqueza

 

Veja bem como trabalho

Pra você sem ganhar nada

E disposta a receber

Do mais fraco ao mais possante

Você é o viajante, seu moço

Eu sou a estrada

Comovido com o trágico acidente, o poeta Dedé Monteiro, num penar imensurável, escreveu o poema intitulado Morte Malvada questionando a própria morte por ter levado precocemente o poeta Zé Marcolino.

 

Morte malvada, por que não passaste

Mais dez segundos pra cruzar a pista?

Bastava isto, mas tu te apressaste

E assassinaste nosso enorme artista.

 

Sei que nem sabes o que aconteceu,

Tu nunca paras pra refletir nada.

Mas se quiseres saber que morreu,

Pergunta ao povo de Serra Talhada.

 

Pergunta aos filhos, à família, enfim,

Tribo saudosa longe do Pagé.

Pergunta a todos, mas esquece a mim,

Que eu sou suspeito pra falar de Zé.

 

Pergunta a Louro, Rei dos Trocadilhos,

Ao velho Pinto, que está vivo ainda,

E aos mil poetas que também são filhos

Da mesma musa cuja luz não finda.

 

Sai perguntando, não sossega mais,

Indaga a lua, faz pergunta ao vento,

E, com certeza, tu depois terás

Muitos motivos de arrependimento.

 

Quem pôs na estrada tanta poesia,

Não merecia ter morrido nela.

Morte malvada, Zé não merecia,

Por que fizeste uma traição daquela?

 

Prata soluça, Paraíba geme

A dor imensa dessa perda enorme.

Tu nada sentes, mas minh’alma treme,

Lembrando o gênio que pra sempre dorme.

 

Serrote agudo, Sala de reboco,

Cacimba nova, Pedra de amolar,

Rolinha branca… tudo fala um pouco

De quem calaste pra jamais cantar.

 

Deixaste em luto toda região.

Ficamos todos na maior saudade.

Mataste o homem, mas o nome, não.

Zé permanece pra posteridade.

 

O fatídico acidente foi motivo de grande comoção no meio poético. Entretanto serviu de inspiração e diversos poemas sugiram questionando o ocorrido. Poderíamos até afirmar que um tribunal poético imaginário foi criado para esclarecer a culpabilidade do acidente que culminou na morte do poeta.

Uma volta ao passado para lembrar com saudades Zé Marcolino

O poeta Ivanildo Vila Nova, incisivo em seu pronunciamento, atribui a culpa a rês que inadvertidamente cruzou o seu caminho:

 

(….)

 

Foi a vaca o motivo desse choro

Sem querer nos causou tanta saudade

Um poeta tem mais utilidade

Do que carne de vaca, leite e couro

Era filho de prata e valeu ouro

Criatura telúrica e inspirada

Escreveu um poema pra estrada

E sucumbiu nas estradas do destino

Uma vaca matou Zé Marcolino

E eu não dava José numa boiada

 

Já poeta Zé de Cazuza, no mote do poeta Sebastião Dias, preliminarmente, exime de culpa a rês que, inocentemente cruzou a estrada e foi ao encontro do poeta Zé Marcolino, atribuindo a culpabilidade à própria estrada pela falta de benevolência e comprazimento por quem tanto a admirava:

 

Meu compadre, colega e quase irmão

O saudoso poeta Marcolino

Comandado da sorte ou do destino

Foi mandado pra outra região

Uma vaca inocente, sem razão

atropela-lhe o carro em disparada

Deixa a pista de sangue nodoada

como marca de tudo que se deu

A estrada matou quem escreveu

O mais belo poema da estrada

 

A estrada não teve complacência

De poupar um poeta cantador

Que cantou sua glória, seu valor

Lhe tratando com tanta deferência

Se esqueceu que aquela inteligência

Precisava rever sua morada

Foi ingrata, perversa, desalmada

Machucou-lhe o crânio, ele morreu

A estrada matou quem escreveu

O mais belo poema da estrada

 

Entretanto, Zé de Cazuza faz uma ressalva, deixando nas entrelinhas que o acaso utilizou-se da estrada para ocasionar a morte do poeta Zé Marcolino:

 

Sei que a vida do vate terminou

Por motivo de um carro que virava

Por fração de segundo ele escapava

Por fração de segundo se acabou

O poder do acaso atravessou

Lhe trazendo da morte esta embaixada

Seja a alma do corpo desligada

Um subiu para o céu, outro desceu

A estrada matou quem escreveu

O mais belo poema da estrada

 

Seguindo esta mesma tese, o poeta Manoel Filó não compreende como obra do destino e também defende a tese de que a força do acaso se utilizou da estrada para tal feito.

 

Eu não creio na força do destino

Só respeito os poderes do acaso

Porque Cristo não vai marcar um prazo

Para haver um sequestro dum menino

Nem também segurar Zé Marcolino

Controlando o horário da chegada

Para que não faltasse uma passada

Nem sobrasse pra onde a rês correu

A estrada matou quem escreveu

O mais belo poema da estrada

 

O poeta Simplício Lira-Pio, utiliza-se do mesmo mote do poeta Sebastião Dias, para, de forma antagônica, fazer uma defesa da estrada em detrimento da rês, atribuindo-lhe a culpa numa retórica poética irretocável:

Uma volta ao passado para lembrar com saudades Zé Marcolino

Resolvi contestar em petição,

Qual motivo real ela teria

Pra matar o autor da poesia

Que lhe deu a melhor definição!?

Qual a prova pra tal condenação

Se uma rês que cruzou foi a culpada!?…

No processo ela foi injustiçada,

É preciso entender o que se deu!

A estrada matou quem escreveu

O mais belo poema da estrada

 

Esse caso terá nova arguição,

Pra tentar fazer outro julgamento,

Até Bira dará depoimento

E depois deporá Sebastião.

Testemunha não tem de acusação,

Pra dizer de que ela é acusada.

Com justiça ela possa ser julgada

Lá de cima até Zé absolveu

A estrada matou quem escreveu

O mais belo poema da estrada

 

Dando prosseguimento ao julgamento, após cumpridos todos os ritos, o poeta João Luckwu profere o veredicto poético:

Uma volta ao passado para lembrar com saudades Zé Marcolino

Marcolino cumpriu a sua meta

Não importa saber quem teve a culpa

Pois a morte só quer uma desculpa

E o sertão se despede do poeta

Uma rês cruza a estrada feito seta

Assustada, inocente e sem destino

Condenar sem razão é um desatino

Pois sem prova cabal se arquiva o caso

Nem estrada, nem rês, nem o acaso

Zé se foi por chamado do divino

 

Marcolino deixou um legado poético-musical que transcendeu os limites do Cariri paraibano e Sertão do Pajeú se espalhando por todo o Nordeste brasileiro.

 

Os filhos Bira Marcolino e Fátima Marcolino, seguindo os passos do pai, dentre tantas outras canções, compuseram Siá Filiça, em referência à Dona Felícia, uma senhora conterrânea que fez parte da infância de ambos:

 

Cadê a lenha da fogueira, Siá Filiça

Cadê o milho pra assar

Cadê aquele teu vestidinho de chita

Que tu vestia pra dançar

 

Cadê aquele sanfoneiro

Que eu pedia pra tocar

A canção da minha terra

Um forró de pé-de-serra

Que eu ajudava a cantar

 

Quando me lembro disso tudo, Siá Filiça

Me dá vontade de chorar

 

(….)

 

Walter Marcolino aderiu ao estilo cômico musical liderando a Banda CUrrupio juntamente com o filho Walter Júnior e emplacando os sucessos Mick Roll, No pequito pá, Arreganhou meu people, dentre outros. Hoje resta uma saudade tamanha. E por falar em saudade Zeto do Pajeú e Bia Marinho na canção Marcolininada retrataram com proficiência a saudade que sentiam do poeta:

Calou-se a voz que cantava

De minha terra a beleza

Que deste sertão de aço

Decantou tanta pureza

 

Pra quem o feijão no prato

A família em volta à mesa

Era a maior alegria

Incomparável riqueza

 

Chorou a rolinha branca

Bem-te-vi, passo carão

Nicodemos já não dança

Xote, pagode ou baião

 

Felismina foi embora

Diz que não volta mais não

Pois não suporta a saudade

Que aperta seu coração

 

Até a caixa de fósforo

Seu singular instrumento

Sente a falta do batuque

Com tanto constrangimento

 

E a pedra de amolar

Já não dá mais polimento

O machado já não corta

Sabiá canta em lamento…

 

Que falta nos faz poeta

Tua rizada gostosa

Sempre uma nova piada

E meia hora de prosa

 

Vai andar sempre com a gente

A lembrança permanente

Seu andar meio indolente

Seu ar despreocupado

Com seu jeito bonachão

Enquanto existir baião

Seu nome será lembrado

O poeta cantador Rui Grúdi, em seus versos, implora a volta do poeta:

Se eu tivesse o privilégio

De ir falar com o divino

Eu ia pedir pra ele

Modificar o destino

E devolver pro Nordeste

O poeta Marcolino

(….)

Marcolino foi um ícone da cultura popular nordestina. Violeiro, repentista e cantador, foi um exímio observador dos detalhes da natureza. Seus poemas e canções retratavam com maestria a beleza das coisas do sertão. Numa singela homenagem quando da passagem dos trinta anos do poeta no plano terrestre, escrevi o poema intitulado:

30 ANOS SEM TER ZÉ MARCOLINO

O SERTÃO CHORA A FALTA DO POETA

 

Em Sumé principia sua história

Que por Serra Talhada se estendeu

Com “Gonzaga” alcançou seu apogeu

Carnaíba pôs fim a trajetória

Descrever de maneira bem simplória

Esse vate que cedo se projeta

Os percalços que a vida lhe decreta

Num chamado precoce do divino

Trinta anos sem ter Zé Marcolino

O sertão chora a falta do POETA

 

A estrada que entoa uma canção

Foi cenário onde fez sua passagem

Transcendendo tal qual uma miragem

Deixou órfão forró, xote e baião

Nessa vida cumpriu sua missão

“Ispaiando” a cultura mais seleta

O conjunto da obra se completa

Com seu jeito caboclo nordestino

Trinta anos sem ter Zé Marcolino

O sertão chora a falta do POETA

 

Na lembrança ficou Serrote Agudo

Desprezada restou Cacimba Nova

Declinou-se o vaqueiro ao pé da cova

Rio da Barra secou, “cabou-se” tudo

De tão triste o carão já ficou mudo

Um penar machucando o peito afeta

Felismina se foi sem rumo ou meta

A vagar nesse mundo em desatino

Trinta anos sem ter Zé Marcolino

O sertão chora a falta do POETA

 

Nicodemos sem par não mais dançou

O vem-vem sem cantar ficou tão só

Já não tem mais rainha o Moxotó

Sem moer, Severina amufinou

O reboco da sala despencou

Cumaru tinha a flor mais predileta

A saudade imprudente e inquieta

Faz lembrar os pesares do destino

Trinta anos sem ter Zé Marcolino

O sertão chora a falta do POETA

Salve a cultura popular nordestina!!! Salve o poeta Zé Marcolino!!!