Publicado às 05h35 desta quinta-feira (13)

Flaviano Roque, cronista serra-talhadense

Depois desses três primeiros textos publicados pelo Farol, uma minoria vai me taxar de saudosista; imagine só, sair por aí falando de novos cavalos-ferro e canções do Exílio. Mas, oxalá! Não tenho ressentimentos, nada melhor que uma contrariedade. Além do mais, é preferível ser chamado de saudosista a ser confundido com um nostálgico, e a diferença é elementar; eu sei de minhas saudades e, por óbvio, como é primário a cada um, não pretendo desejar algo que me cause dor e má memória, como alguns, inconscientemente ou mesmo conscientemente, desejam.

O leitor logo vai entender: um cronista é sempre um péssimo escritor de epopeias, precisa de pouco espaço para dizer o que pensa e dissipar suas saudades e rancores. O autor, desses de grandes obras, deseja ser reconhecido por seu conjunto literário, encapado e coerente. Diferentemente, o cronista de jornal, usando da metáfora de Rubem Braga, “é um cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”, ele não se prende por dias sucessivos, sofregamente, em uma história, embora também não se furte de momentos para descansar. Para o cronista é melhor pular de lembrança em lembrança, sempre em busca de algo ausente, um armar e desarmar barracas, constituindo minimamente algumas memórias. Todavia, para não haver caras e bocas, bem como para não encher essa lauda apenas com papo de escritor, falemos de algo atual.

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No dia de hoje, o Brasil bateu mais de Cem Mil mortos pela Covid-19. Além de luto não sofrido, de enterros sem velório, de mortes despercebidas, fora tudo isso, há muito mais… Nós, definitivamente, não estamos acostumados a ver o mundo sem os seus ritos de passagem. Comentava isso com um amigo, na viagem curta entre São José do Belmonte e Serra Talhada, dizíamos ser essa uma das piores faces dessa doença: não poder velar seus mortos. Essas vidas findas são a prova de que alguns saudosismos são frutos de excesso de realidade.

Fora o descaso e a mansidão no tratamento desses problemas — embora, não sejam escusados os alertas claros (em especial destinado aos concidadãos), como o realizado pelo Professor Leandro Lucena aqui no Farol, mostrando o aumento da taxa da mortalidade em comparação com meses anteriores —, ainda permanecemos em estado de letargia aguda, pasmados ante a crueza da vida. E o patriotismo não ajuda, sendo uma criança mimada, não passa muito bem diante de doses de cuidado, porque é comum dizerem que amam o Brasil sem amar de fato os brasileiros.

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Por coincidência, na madrugada de ontem, eu lia uma crônica futebolística de Nelson Rodrigues, ele como sempre se vangloriava da beleza do escrete nacional dos anos 60, mostrava o quanto existe de futebol e de festa em cada brasileiro. Porém, se passaram umas páginas e, de forma repentina, ele soltou uma frase magnífica “Vai haver o diabo […] 100 mil brasileiros não se reúnem para nada”… Era uma referência à passeata ocorrida em 26 de junho de 1968 contra a ditadura militar, que levou o nome de “Passeata dos Cem Mil”, arvorada pelos intelectuais e pensadores da época. Ele estava certo e ainda tem toda razão: Vai haver o diabo! Pois são 100 mil brasileiros fatidicamente reunidos.

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Eis uma nova passeata diante dos nossos olhos! Nelson descobriu, sarcasticamente, algo que nos é extremamente atual nestes tempos de pandemia: seja uma passeata de 100 mil brasileiros, seja a morte de 100 mil, nada importa quando os brasileiros, de fato, não estão unidos. Desejo conforto e solidariedade às famílias.