Publicado às 05h25 desta sexta-feira (4)

Diego Kehrle – Mestre em Literatura e Culturalidade (UEPB), Licenciado em Letras (UAST), atualmente é Diretor Pedagógico do Colégio Francisco Mendes

Neste ano de eleição, será comum ouvir políticos criticando ou defendendo números, como os do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) ou do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), que mostram, a depender do uso político, o crescimento ou a piora na qualidade da educação brasileira. Na última coluna, falamos um pouco sobre os efeitos negativos da nota sobre a aprendizagem [clica no link].

No entanto, o problema das notas não afeta apenas os alunos, individualmente, impede também a mudança de todo o sistema escolar. Por utilizarmos uma ferramenta limitada, ineficiente e excludente para avaliar tudo aquilo que acontece nas escolas, reduzimos a realidade de alunos, professores, famílias e gestores escolares a um número abstrato que não nos ajuda a identificar, em detalhes, o que precisamos fazer para melhorar a qualidade da educação oferecida nas escolas.

Se pudéssemos resumir a história do processo de avaliação educacional, poderíamos dizer que o modelo atual de avaliação tem suas raízes em métodos orais de avaliação da capacidade de memorização, utilizados desde a antiguidade, quando ainda não havia bancos de dados, HD’s externos, pen drives, nem livros e no Método Lancaster, posto em prática pelo inglês Joseph Lancaster (1778-1838), e que foi criado para ensinar a um grande número de alunos sem grandes custos.

Nas escolas que aplicavam este método, os alunos sentavam-se num único e grande salão em que os lugares eram distribuídos de forma hierárquica, iniciando com os bancos daqueles com resultados inferiores até os bancos daqueles que erravam menos. Neste cenário, em um ambiente de extrema competitividade, dependendo dos erros e acertos, os alunos iam trocando de lugares e subindo ou descendo na “escala de avaliação”.

A partir da década de 1920, com o nascimento da Docimologia, palavra que significa “medida por exame” (ou em latim dakimê), as provas começam a se tornar o principal meio de avaliação nas escolas. A justificativa para a utilização e o aperfeiçoamento das provas, era de que elas eliminavam qualquer visão pessoal do examinador, o que oferecia a medida exata do conhecimento daqueles que fossem “testados”. É por meio da disseminação dessa visão, que privilegia o conhecimento que pode ser mensurado e reduzido a números, por ser mais “objetivo” ou “científico”, que até hoje confundimos “avaliar” com “medir”.

Na década de 1940, por conta da necessidade de massificar o processo educacional para toda a população e da seleção daqueles que estariam “aptos” a assumir os cargos de direção na sociedade, começam a ser estabelecidos objetivos mais específicos a serem alcançados pelos sistemas educacionais. Por serem mais rápidas e simples de aplicar, sendo por isso menos custosas para produzir medições em larga escala, as provas padronizadas terminaram sendo favorecidas pelo contexto da época e se consolidaram como instrumentos centrais para avaliar e comparar alunos, escolas, estados e países.

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A justificativa foi a de que a classificação mostraria que escolas, estados ou países estariam mais próximos ou mais distantes das metas estabelecidas pelas políticas educacionais, assim como, a nível local, deixaria explícito que estudantes estariam mais próximos ou mais distantes da média ou do aproveitamento mínimos nas escolas.

Apesar dessa promessa, há mais de 50 anos resultados de diversos estudos, análises e pesquisas, como as realizadas por Daniel Stufflebeam (1960), Lee Cronbach (1963), Michael Scriven (1967), Robert Stake (1967), Alfie Kohn (2000), Michael Quinn-Patton (2017) e Daniel Koretz (2020), constatam que existem outros tipos de avaliações muito mais efetivas (avaliação formativa e avaliação focada no uso), como mostra que a avaliação somativa (baseada na prova padronizada), feita de forma pontual, no fim do período e com o objetivo de classificar, além de não realizar nem aquilo que promete, produz efeitos nefastos para a educação das crianças e jovens.

Ao não permitir a identificação e a criação de estratégias de aprimoramento do processo de aprendizagem enquanto ele acontece, este tipo de avaliação termina funcionando também como um sistema de filtragem e seleção daqueles que “naturalmente” conseguem passar de ano na escola e avançam nos vestibulares por virem de contextos de maior segurança econômica, social e psicológica. Em outras palavras, avaliar através de provas, além de ser ineficiente do ponto de vista da aprendizagem, privilegia aqueles que possuem melhores condições sociais, econômicas e culturais.

Do ponto de vista científico, ficou provado que a prova não é objetiva. As pessoas que criam as questões fazem escolhas sobre que assuntos são importantes e que assuntos não são, decidem sobre o que colocar ou não. Além disso, quem corrige determina que tipos de respostas serão aceitas ou não.

Por exemplo, no caso de um estudante que acerta boa parte dos cálculos numa prova de matemática, mas que se equivoca no final, é possível considerar o raciocínio correto apresentado em boa parte da questão ou apenas se a resposta está “correta” ou não? Como considerar em que nível ele está em relação a um estudante que sequer fez contas mas filou e acertou? Ou de um outro que calculou equivocadamente desde o início? A decisão é subjetiva, cabendo a cada professor ou escola.

É sabido que a ansiedade produzida pelas provas interfere naquilo que se quer “testar”, quanto mais peso tem a prova, mais ansiedade ela causa e mais ela interfere na capacidade do estudante de mostrar aquilo que realmente sabe, o que diminui o grau de validade da prova. Além disso, como é possível utilizar as provas para tomar decisões pedagógicas ou avaliar escolas se os estudantes podem não ter se preparado ou podem simplesmente não levá-las a sério?

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Pelo tempo reduzido de aplicação e por aquilo que pode ser avaliado nesse tempo, as provas testam apenas a memorização de curto prazo. Seja a memorização de procedimentos, fases, estados, níveis, relações, nomes, sequências ou fórmulas, o fato é que não se alcança um entendimento através de interpretações reflexivas, de longas análises de problemas abertos ou da compreensão de relações complexas.

Não se desenvolvem habilidades fundamentais para o trabalho, a vida cotidiana ou para as relações em sociedade. Em matemática, há mais preocupação em que o estudante saiba que “<” significa “menos que” do que em desenvolver a capacidade para o pensamento lógico. Com esse tipo de avaliação, não se estimula a pensar como um cientista, mas a decorar as 4 fases da mitose.

O professor e pesquisador Alfie Kohn (2000), pergunta:

Quando alguém vai avaliar a qualidade do seu trabalho, sendo você um cantor, um bombeiro, um analista financeiro, um professor, um vigilante, um eletricista, um repórter ou um psicólogo, geralmente eles observam ou se baseiam em exemplos ou casos do que você já fez e realizou ou te dão uma caneta para você responder uma prova surpresa?

Os seus efeitos psicológicos também são perigosos, a lógica da prova está conectada com a noção de que todos devem aprender no mesmo ritmo, o que faz com que as crianças que precisam de mais tempo para aprender se considerem e sejam consideradas como “atrasadas” ou com “dificuldades de aprendizagem”. Em crianças menores, seus efeitos são ainda mais perversos, já que nessa fase as crianças adquirem e desenvolvem habilidades de maneiras e em ritmos completamente diferentes, sendo absurdo esperar que aprendam as mesmas coisas, ao mesmo tempo, e que isso seja testado como se todas fossem iguais.

Quando passamos a questões mais técnicas, como o uso de médias, como é o caso de sistemas educativos que utilizam a média 7, por exemplo, entramos em terreno ainda mais confuso. Nas escolas em que há uma média a ser atingida, quando é dada uma nota, seja para uma prova, seja como média final, ninguém sabe dizer quanto do currículo foi aprendido ou cumprido em sala de aula.

Quando um estudante tira 7,5 e outro tira 6, não se sabe que assuntos foram aprendidos por cada um, pois além do fato da prova ser uma seleção de poucos conteúdos a partir de um grupo de conteúdos mais extenso, pois não há tempo para testar tudo, há ainda uma pressuposição de que aquilo que foi testado na prova reflete o conhecimento daquilo que não aparece na prova: a maior parte dos conteúdos permanece não “avaliada” pela prova. Dessa forma, o uso da nota não leva em conta se aprendemos o conteúdo, mas a quantidade de questões “corretas”, não há preocupação com o que realmente foi aprendido, apenas se a média foi atingida ou não.

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Outro ponto, é que ao premiarmos as que conseguem atingir a média, as crianças começam a pensar e a fazer de tudo para memorizar, para passar na prova, passar de ano, e não para aprender. Quantas vezes não vemos as famílias e professores cobrarem ou punirem estudantes por confundirem “saber pensar” ou ser inteligente com a capacidade de “decorar muitas coisas”? Além do decoreba, as provas estimulam os estudantes a tomarem decisões rápidas e sem a devida reflexão, incutem que para todos os problemas ou questões as respostas se dividem entre certas e erradas, que a resposta já existe e alguém pode nos ensinar, em vez de nos motivar a construir as nossas próprias explicações.

Por estes e outros motivos, o modelo escolar convencional não possui a intenção de ensinar ou de garantir a aprendizagem de todos, este nunca foi o seu objetivo. Se fosse, o sistema escolar não seria organizado da maneira que é. Quando falamos que o objetivo da educação pública, por exemplo, é garantir a todos o direito à educação, precisamos questionar por que usamos um sistema de filtragem e de seleção (a prova padronizada e classificatória), ou seja, de exclusão, se queremos garantir a inclusão de todos? A essência do sistema de avaliação convencional é a classificação, não o aprendizado.

Hoje, as provas padronizadas e classificatórias não decidem apenas em que bancos podem sentar crianças e jovens, privilegiando as que possuem uma melhor condição social e econômica, elas também definem que escolas devem receber mais ou menos verbas para a melhoria da estrutura e para bonificação de professores, agora tratados como batedores de metas.

Para completar, os exames de larga escala passaram a servir para justificar a imposição de modelos ainda mais arcaicos (escolas militares, por exemplo), com a desculpa de que precisamos “melhorar” os índices escolares – não à toa o prof. José Pacheco chama o IDEB de Índice de Decoreba da Educação Básica. Como melhorar algo insistindo num instrumento completamente falho?

Por fim, a pergunta que precisa ser feita é: se queremos realmente que todos tenham acesso a uma educação de qualidade, por que não avaliamos a escola e o estudante de forma global, de maneira contínua, sistemática e com a prevalência dos aspectos qualitativos em vez dos quantitativos, como preconiza a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação)? Por que continuamos aplicando um método avaliativo ultrapassado, excludente, perverso e que não ajuda em nada na melhoria da qualidade das escolas? Por que as escolas e as secretarias de educação seguem fora da lei e ninguém faz nada?