Fotos: Farol de Notícias/Licca Lima

Publicado às 05h22 desta quinta-feira (16)

Pelos olhos de Dodô já passaram uma infinidade de gente viva. Pelas mãos de Dodô, entre a terra e o choro, 20 mil mortos descansaram. No rosto já vencido pelo tempo, a barba branca e os olhos vivos contam as histórias que se escondem dentro das capelas, por trás dos túmulos e no meio das flores do Cemitério Publico Municipal de Serra Talhada. Aos 25 anos, Francisco de Assis [seu nome de batismo] ouviu que seria dele a missão de cuidar daqueles que já não fazem mais parte da rotina dos vivos.

A profissão de coveiro nunca foi mistério, nunca foi espanto para ele. Dodô já sabia que suas mãos tocariam a terra onde a lembrança mora e seus pés percorreriam ruas silenciosas, adornadas por cruzes, dor e rosas brancas. Assim como foi com seu bisavó, com seu avó, com seu tio e como está sendo com seus filhos, as despedidas alheias seriam seu expediente.

 

Mas como o fio de Ariadne, a sensibilidade sempre guiou Dodô pelo labirinto fúnebre desenhado pelos túmulos. A morte nunca foi sua companheira e durante os quase cinquenta anos que cavou, que enterrou, ela nunca conseguiu endurecer seu coração. “Eu tinha a maior dó de pegar um cristão e jogar aquela terra em cima”, desabafa como se quisesse se defender do peso espiritual de guardar alguém a sete palmos do chão.

MALASSOMBROS DO CEMITÉRIO 

Nunca viu assombração, mas escutou algumas vezes “o choro dos anjinhos” que enterrava. Não enterrou seu pai, assim como não enterrou uma grande amiga. “Uma pessoa tão legal e jogar terra em cima dela”. O homem que enterrava anjos e os ouvia chorar, temia seus próprios limites diante do adeus daqueles que amava. Não que fosse indiferente aos enterros que realizava, mas a dor tem seus próprios princípios e Dodô não ousou desrespeitá-los.

No meio da sua lida, sem equipamentos básicos de proteção, atolando na lama sepulcral, a física e a espiritual, sem aparato do governo; Dodô adoeceu. Durante os 42 dias que passou internado, recebeu a visita do que antes era o motivo de ter o que sustentar a família. A morte apareceu para Dodô sob a forma dos anjinhos enterrados  ou como uma visão de seu próprio velório. Mas ele assegurou que sempre quis viver e que não se acostumou com a visita.

PROFISSIONAL DESVALORIZADO

Em 2021, aos 77 anos, conseguiu se aposentar. Mas diferente da morte, o governo não foi justo com o coveiro. Com certo amargor, ele conta sobre os direitos negados e as condições precárias de trabalho. Se ressente pelo passado de desvalorização profissional, mas não abandonou o cemitério. Continua a lidar com covas e túmulos, agora plantando e pintando, dando vida ao que jaz.

E como quem cumpriu seu papel, fala com tranquilidade que permanece trabalhando para ajudar a família composta pelos nove filhos, mais de quarentas netos, doze bisnetos e quatro tataranetos.

Sentado embaixo de uma árvore, as mãos sujas de cal, o velho coveiro descansa os olhos vibrantes por cima das capelinhas. Agora são seus filhos que talvez escutem os anjos chorarem. Dodô não se acostumou com a morte, mas a tolera como parte de sua própria vida.