Por Flaviano Cássio, estudante de Direito da Faculdade de Integração do Sertão (FIS)

Conhecer o que me cerca tem sido uma das coisas que mais tem me assombrado. Saber como tudo funciona no mundo ou com tende a estar é angustiante, a começar pela minha prática diária. Ao mesmo tempo isso me impulsiona a continuar pensado e chegando a novas conclusões mais duvidosas ou mais insensatas. Porém, quanto a isso sinceramente não me importo – deixo todo o rigor e formalismo para o ambiente acadêmico, ainda tão centralizado e supostamente autossuficiente em suas teorias; aí, é provável que essa forma de proceder tenha mesmo sua utilidade: onde por vezes não é preciso pensar, apenas repetir pensamentos irrefletidos de outros, ser disciplinado. 

Contudo, no silêncio do meu quarto, na minha escrivaninha ouso experimentar meu cogito, abrir as janelas para que ele possa respirar livre. Prefiro dialogar com minha arma mais poderosa, encantar-me com meus próprios delírios entre o real e o fantasioso. Fazer do conhecer um discurso trágico, no qual todas as vezes que o conto ou que o exerço ele já se apresentará de outra forma. E, sendo assim, não preciso querer inovar no pensamento, pois não existe origem fundadora para  o pensamento, ele é sempre atual, é sempre como me aparece.

Posto meu pequeno modo de abordar as ideias que me aparecem, posso retomar aqui alguns pensamentos que me correram ontem, por certo oriundos da instigação que me cercou pelo material teórico que procuro e experimento intelectualmente. Pude então repensar algumas perspectivas para o conhecimento metafisico em contraposição ao conhecimento instintivo (humano). Dando após isso meu posicionamento. Primeiramente, não farei (ao menos incialmente) distinção valorativa entre as duas formas de pensar. Apenas vou expô-las como as entendo, e dentro das minhas limitações, tentar assim falar das suas consequências e do seu modo de operar, de modo que aqui a concordância com as teses apresentadas poderá se fazer, após saber,  qual modelo lhe for mais preferível. Pergunto:  existe um conhecimento metafísico? Bem, se a resposta é afirmativa, e não vejo por que haveria de não ser, ainda assim temos que nos enfurecer com uma resposta tão curta, diante de um saber que, se realmente pode ser real, deve ser o maior saber até agora sentido.

“Contudo, no silêncio do meu quarto, na minha escrivaninha ouso experimentar meu cogito, abrir as janelas para que ele possa respirar livre. Prefiro dialogar com minha arma mais poderosa, encantar-me com meus próprios delírios entre o real e o fantasioso”

A resposta pela existência de um saber metafísico não nos diz efetivamente o que é esse saber, e como ele opera diante de nós. É isso que vamos buscar. Logo, para conhecer a potencialidade desse saber vamos ter que pressupor é que existem essências e, é a partir delas que se opera tal elemento.  É simples, é como falar sobre qualquer coisa que existe concretamente, mas saber que essa é apenas uma aparência pálida dos objetos que estão ao nosso redor, pois não poderia dizer que o amor existe ou que o ódio existe, se não tivesse previamente uma ideia do que são esses sentimentos. Não preciso assim estar amando ou estar odiando para saber o que é o ódio, sabe-se por antecipação, por reconhecimento.

Essa forma de reflexão nos conduz a uma interiorização do homem[1]. Os sentimentos não tem significação fora dele (O homem), seu saber estar justamente na sua alma, no seu espírito, na sua essência, e tudo nesse saber tende ao centro. Vai achar sua fonte não na diversidade de corpos e coisas ao nosso redor, pois essas são passageiras irreais, é na unidade essencial que se achará a perfeição: Deus. É a metafísica um saber único, pois se opera centralizando os demais saberes por ventura existente, e ilimitado devido sua completude em fundar tudo ao seu redor – não poderia estar à mercê de qualquer dependência, isso lhe levaria ao mundo externo e não a essência, ele não precisa de complementação é uno.

Agora caberia falar um pouco sobre o saber instintivo ou humano. Para isso percebo que basta inverter as proposições para chegarmos a respostar satisfatórias. E, se é ao centro que o saber fundacional se dirige, contrariamente, o saber instintivo ignora esse locus espiritual, e passa a se dirigir cada vez mais para fora, afinal os instintos humanos não se descarregam para dentro, isso destruiria o homem (aliás o destrói hoje). E aqui falamos em uma exteriorização do homem, é literalmente o seu voltar-se para fora e perder-se na imensidão caótica das suas percepções, nas realidades plurais e múltiplas que se desenvolvem. É querer uma realidade variada e limitada, pois aqui nada estar concluído e tudo ainda há por fazer. Assim, o homem se faz homem se exteriorizando para o mundo, se faz homem gastando o que há de humano em cada ato praticado. A preservação da sua essência é algo não mais querido tal como ocorreria no saber metafísico.

“afinal os instintos humanos não se descarregam para dentro, isso destruiria o homem (aliás o destrói hoje). E aqui falamos em uma exteriorização do homem, é literalmente o seu voltar-se para fora e perder-se na imensidão caótica das suas percepções”

Compreendam-se ainda os instintos como forças. Toda força quer mais é expressar seu poder, que medir todas as resistências que se levantam diante de si, e isso se dar exteriorizando-se, pois no eu inconsciente não existe força alguma. Posto essas explicações ainda não pudemos ver esses dois saberes operar diante de algo ou mesmo medir forças entre eles mesmos. Para fazer isso, vou tentar atualizar uma explicação usada por Claudio Ulpiano[2] para o desejo. Vejamos que para os dois saberes se pode delimitar o nível ou o modo como se opera o desejo. Mas o que é desejar? É a sede por algo que buscamos, e essa sede tenderia ao objeto ou a algo que sacie essa vontade, e após satisfazer-se ocorre à quietação. isto é, o desejo opera-se satisfazendo-se.

No saber fundacional ou Metafísico, o que desejo é a essência das coisas, e por isso ao chegar ai creio não precisar mais de nada, para exemplificar: pensem em um ato de canibalismo entre homens primitivos, para que esse ato ocorra é preciso que exista um desejo, e esse desejo vai querer se satisfazer obviamente. Como no saber fundacional o desejo é feito por interiorização, a prática do canibalismo deveria trazer ao homem a satisfação à completa quietação interior, e desse modo ele não precisaria de mais de nada.

Mas aqui expomos as limitações desse saber metanarrativo, afinal, como explicar que esse homem sentira fome novamente? Como dizer para ele que só se exteriorizando novamente poderá se satisfazer? Como explicar que seu desejo na verdade não terá fim, por ser um ser limitado terá sempre que se completar outra vez, e que sua fome perdurará enquanto durar sua limitada condição humana? Ou como dizer que por vias ideiás ele não encontrará satisfação alguma para seu desejo? A resposta é obvia, se esse homem estiver preso ao saber teológico vai ter que mascarar essa condição, vai dizer então: os homens são maus, pois praticam atos de canibalismo (como se não fosse também um canibal!!!), e com isso não preenchemos a nossa totalidade espiritual é, portanto, insuficiente se alimentar, pois novamente sentirei fome, é preciso fazer abstinência de carne humana. Ora, mas assim resolve-se o segredo da fome parando de comer, como é possível? 

“Como explicar que seu desejo na verdade não terá fim, por ser um ser limitado terá sempre que se completar outra vez, e que sua fome perdurará enquanto durar sua limitada condição humana?”

Veja que a ilustração é apenas simplória, mas cheia de significações. A conclusão para esse proceder teológico é simplesmente o desejo pelo nada, de alguém frustrado pelo seu idealÉ a força que se transformou em baixeza, e para poder dizer ainda sim a si mesma e continuar ignorando a exterioridade do homem, vai criar uma nova concepção de satisfação para o seu desejo – uma satisfação espiritual (negando a carne). Para mim isso significa que o saber metafisico não pode sustentar-se por muito tempo em seu centro essencial, e para isso arruma novos meios de voltar-se para fora (poderiam se tornar vegetarianos esses canibais) ou mesmo insistirá em continuar do lado de dentro, e por não suportar a solidão do nada e do vazio em que se encontrará terá que sair em busca de outros tornando-os também decadentes. Um mundo estético ou meramente instintivo não precisaria de ressentimento ou de negação para viver, não precisaria das essências nem retornaria a elas, seu sentido é o lado de fora. E longe de pensar estruturas para o saber ou abstrações lógicas percebe-se exteriorizando-se e não por negação. 

Em um sentido de sociabilidade digamos que esses homens tenham mesmo existido, e com uma versão de espiritualidade fundacional, por certo, virão a se conservar melhor, porém, é para conservar-nos que vivemos? A conservação torna o homem algo melhor?  Uma coisa é certa, esses canibais continuaram sentido fome humana. E hoje, é a nós mesmos que deveríamos devorar. Provar de nós mesmos ao invés de tornarmos seres decadentes, com fome e sede de verdade, mas com medo de se exteriorizar. Ser instintivo passou, num mundo coletivo, a ser algo feio e desprestigioso, quando na realidade é nesse local que mais transbordamos humanidade, pois interiorizando o homem nada encontramos: como disse alguém com muita razão (e continua a ter razão) – somos ainda uns desconhecidos de nós mesmos[3].


[1] Cf. Niezsche (Genealogia da Moral) Sobre interiorização do homem.

[2] http://claudioulpiano.org.br/.

[3] HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. — 26 ed.— São Paulo: Companhia das Letras. 1995.