Da Folha de PE

É que “Canto de preto que brota da terra, nem o progresso pode arrebatar”. “Canto de preto que brota da terra” ecoa libertário, amplifica urgências e (en)canta, tríade que integra o todo agigantado por Gabi da Pele Preta, potência e deleite da música popular brasileira em voz e movimentos mesclados entre um inalar/exalar fluido e necessário, tal qual o EP recém-lançado nas plataformas digitais e não à toa, carrega no título o nome da artista caruaruense, naturalmente imperativo.

Música ou manifesto? Ambos

Com quatro faixas inéditas, o trabalho colore o universo fonográfico com melodias-manifesto compostas por mulheres engajadas em lutas (pessoais e artísticas) e que envolvem gênero, raça e classes sociais para além do lugar comum.

“(….) o meu primeiro EP e que leva meu nome: Gabi da Pele Preta. Um nome que eu não procurei, mas que se deu para mim de tal forma que abre caminhos, mesmo quando não estou. Um nome de honra para um EP de quatro canções femininas e feministas”, reforça ela, em texto de apresentação do disco que tem direção musical de Alexandre Revoredo – seu parceiro artístico de longas datas.

Mulher, preta, agrestina

Revolucionária artisticamente há pelo menos 18 anos, entoando cantos na noite e em palcos afora, inclusive enveredando pelo teatro, Gabi reforça sua militância como mulher, preta, artista e agrestina a partir de 2016, com repertório que passa a ganhar corpo e adentra universos, inclusive o dela próprio, de forma delicada e contundente, exposto nas faixas que compõem o EP, a começar por “Virá” – canção que abre o trabalho e que foi escrita por Ezter Liu e Joana Terra.

Em entonação crescente (e destemida) Gabi da Pele Preta reivindica um amanhã transformado por mãos, saltos, poros, pulsações e movimentos, assim como “pelas palavras sussurradas e gritadas”. Já em “Gente” ela expressa, em letra escrita por Uma Luiza Pessoa, artista trans de São Paulo, o que se tem para “além dos gametas, cromossomos e X e Y”, culminando no dito de que nós não somos iguais.

Canção para curar

E como quem brada para si mesma em uma súplica dilacerante, a faixa “Canção Para Curar a Voz” – composição que traz de volta Uma Luiza Pessoa – potencializa Gabi prenunciando alívio para (suas) dores interiores. Entre os versos, um passarinho de sangue preto, garras e madeixas longas, enfrentou um mundo “que veio sem dó”.

Mas, vale reiterar que “Canto de preto que brota da terra, nem o progresso pode arrebatar” para quem tem a voz, física e subjetivamente como ferramenta. “A vida me testou há uns anos, tive uma perda vocal porque me senti física e emocionalmente cansada. Fiquei por três meses sem voz, deprimi, empobreci, desesperancei (…). Descobri tempo depois que era emocional o que me calou e corri para sarar por dentro”, relatou ela que finda o EP – incentivado pela Lei Aldir Blanc e gravado nos estúdios Muzak e Carranca, no Recife, e Garage, em Garanhuns, terra de Revoredo – com “Palavra Feminina”.

A faixa tem a vibração da percussão de Nino Alves e se alinha a outras sonoridades que acompanham a letra assinada por outro nome forte da cena musical pernambucana: Isabela Moraes e, novamente, Joana Terra.

Sua reprodução esboça o trânsito corrente de Gabi ao conclamar o uníssono desejo feminino de “parem de oprimir, parem de nos culpar, livres ao que vestir, livres a quem amar”, em melodia rogada pelo respeito e pela aceite do “não” a qualquer tempo, encerrando um trabalho que, tão impávido quanto a própria autora, dá voz a ela mesma e a outras tantas mulheres – de pele, de pele preta e de luta.