Do G1-PE

“Querem transformar meu filho num demônio e Sarí, em santa. Meu filho era uma criança saudável, educada, e eles querem transformar meu filho na pior criança do mundo e querem fazer que Sarí pague de doida. Ela é uma mãe de família, mãe de dois filhos, empresária. É muito fácil colocar a culpa numa pessoa que já está debaixo de sete palmos de terra”.

Como foi a morte do menino que caiu do 9º andar de prédio

Caso Miguel Otávio: veja quem é quem

O depoimento é da ex-empregada doméstica Mirtes Souza, mãe do menino Miguel, de 5 anos, que morreu, em 2 de junho, após cair do nono andar de um edifício de luxo no Centro do Recife. A moradora de edifício deixou o menino entrar no elevador sozinho e apertou o botão de um andar superior.

Sarí Corte Real, a ex-patroa de Mirtes e primeira-dama de Tamandaré, estava responsável pelo garoto no dia da queda. Ela foi denunciada à Justiça por abandono de incapaz com resultado morte.

Nesta quinta-feira (3) ocorreu a primeira audiência de instrução do caso. Foram ouvidas as oito testemunhas de acusação e quatro testemunhas de acusação. O interrogatório de Sari Corte Real não ocorreu e deve ser realizado em outra sessão.

A ré não foi ouvida, segundo ao Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), porque outras quatro testemunhas, que moram em outras comarcas, deverão depôr por meio de carta precatória.

Em coletiva de imprensa realizada no Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, no Centro do Recife, Mirtes Renata disse que viu, pela primeira vez, racismo no tratamento da ex-patroa com relação ao filho dela.

“Meu filho era educado, cheio de saúde, de vida, cheio de sonhos para realizar. Sarí fez o que fez com ele e diz que não fez nada. E o que mais me revolta que era algo que eu vinha negando desde o começo com relação ao racismo, hoje ficou explícito. Sarí não poderia cuidar dele, porque ela era filho da empregada doméstica, era preto. Por isso, ele não teria o direito de ser criança, se ser protegido. Vou lutar para mostrar que ele merecia ser cuidado, como toda criança”, afirmou.

O advogado de Mirtes Souza, Rodrigo Almendra, afirmou que a defesa, na audiência, tentou retratar Sarí como alguém psicologicamente incapaz de prever as consequências de deixar Miguel no elevador, também tentou figurar o garoto, que tinha 5 anos, como alguém que pudesse tomar conta de si mesmo.

“O que me parece ter ocorrido foi um processo de infantilização da acusada e ‘adultização’ da vítima. Ao tempo que se desenvolve uma narrativa de que Sarí era incapaz psicologicamente de prever o mal que poderia causar a uma criança ao deixá-la no elevador, tenta-se criar na estrutura de Miguel uma capacidade de autodeterminação e ‘autogerência’, uma ideia de criança desobediente, com comportamento absolutamente incompatível do que se deveria esperar para uma criança de 5 anos. Me parece ser negar a uma criança o direito de ser criança, e agir como criança”, afirmou o advogado.

O advogado Eliel Silva, membro do Gajop, que também acompanhou a audiência de instrução realizada nesta quinta-feira, afirmou que a entidade pretende proteger a família do garoto.

“O que aconteceu foi mais uma tentativa de colocar Miguel como responsável pelos seus atos. Isso nos faz refletir quais são as crianças que escolhemos proteger. Quais são as crianças valorizadas e acolhidas no Brasil? Mesmo depois que acontecem situações do abandono com resultado morte, ainda assim, no processo, existe essa tentativa de ‘adultização’ do menino Miguel que, repito, tinha apenas 5 anos. Miguel, presente”, afirmou Eliel.

Mônica Oliveira, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, afirmou que o fato de Miguel não ter sido acompanhado pela ex-patroa de Mirtes demonstra que houve tratamento diferenciado do menino devido ao fato de ele ser filho da empregada doméstica.

“Jamais, Saí teria abandonado uma criança branca, filha de uma de suas amigas, no elevador. Não é possível que o sistema de justiça absorva essa tese de que uma criança de 5 anos era responsável pela sua própria vida, que uma mulher de mais de 30 anos era incapaz de prever as consequências”, disse Monica Oliveira.

Audiência

A audiência aconteceu seis meses e um dia após a morte do menino, ocorrida em 2 de junho. A sessão começou às 9h40, na 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital, no bairro da Boa Vista, no Centro do Recife, e terminou por volta das 17h.

Durante a audiência, foram ouvidas oito testemunhas de acusação, incluindo a mãe e o pai de Miguel, Paulo Inocêncio, e a avó da criança, Marta Santana.

A primeira testemunha de acusação foi ouvida por volta das 10h. Cerca de 50 minutos depois, Mirtes informou à imprensa, através de mensagem via aplicativo, que havia sido a única a depor até então.

A audiência foi conduzida pelo titular da unidade, o juiz José Renato Bizerra. Por ser um caso de grande repercussão, a segurança das imediações foi reforçada pela Polícia Militar. O Ministério Público de Pernambuco desistiu da oitiva da nona testemunha de acusação, que seria ouvida por videoconferência, e a defesa concordou.

Depois disso, ocorreu a oitiva de quatro testemunhas de defesa. E, ao longo do trâmite do processo, serão ouvidas mais quatro testemunhas de defesa por Carta Precatória, procedimento usado no Judiciário para ouvir testemunhas ou partes processuais que residem em outra comarca, de cidades ou estados diferentes.

Nesse procedimento, o juiz da comarca onde o processo tramita envia uma solicitação para outro juiz, que deve fazer o processo de intimação do réu ou testemunha e também colher o seu depoimento, para depois repassá-lo ao juiz do caso.

Em nota, o TJPE afirmou que “será marcada uma nova data para a oitiva de mais uma testemunha de defesa e para o interrogatório da acusada [Sari]”.

Movimentação do lado de fora

O pai de Miguel Otávio, o agricultor Paulo Inocêncio, chegou pouco antes das 9h ao local da audiência. Muito emocionado, ele afirmou apenas querer que seja feita justiça pelo que ocorreu com o filho. A mãe do menino não falou com a imprensa antes de entrar no prédio.

Outros parentes acompanharam do lado de fora, também com pedidos de que seja feita justiça. “Ela [Sari] vai responder presa, porque ela tem que pagar pelo que ela fez. Ela podia ter tirado ele [Miguel], ligado para a minha sobrinha [Mirtes]. Se fosse filho dela, ela não faria o que ela fez”, disse a técnica de enfermagem Sandra Maria Santana, tia de Mirtes.

Representantes do Instituto Menino Miguel, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, exibiram uma faixa em frente ao local da audiência. Faixas com os dizeres “vidas negras importam” foram levadas por manifestantes, que ficaram na rua em frente ao fórum.

Durante a manhã, integrantes de organizações como a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco fizeram discursos em frente ao local em que acontece a audiência. Eles relembraram o caso Miguel e pediram o fim da violência contra os negros. Alguns dos participantes declamaram poesias sobre a luta contra o racismo.

Na Justiça

O caso chegou à Justiça após o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) denunciar a primeira-dama de Tamandaré e ex-patroa de Mirtes, Sari Corte Real, por abandono de incapaz que resultou em morte, com agravantes de cometimento de crime contra criança e em ocasião de calamidade pública, devido à pandemia da Covid-19.

Os nomes das testemunhas convocadas para esta quinta não foram repassados pela Justiça. “A decisão leva em consideração a preservação da identidade e a privacidade das pessoas que vão testemunhar na referida audiência, pessoas estas que, inclusive, não configuram partes no processo”, disse o TJPE, em nota.

Depois das fases de Instrução e Julgamento do Processo, o MPPE e a Defesa devem apresentar as alegações finais. Em seguida, o Juízo da 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital profere a sentença.

Além da esfera criminal, a mãe, o pai e a avó de Miguel pediram na Justiça uma indenização por danos materiais e morais, totalizando R$ 987 mil, a Sari Gaspar Corte Real.

Respostas de acusação e defesa

Após o fim da audiência, o advogado Pedro Avelino, que defende Sari Corte Real, falou com a TV Globo pelo telefone.

“Foi uma audiência bastante extensa e cansativa. Diversas testemunhas foram ouvidas. Sari não foi interrogada porque qualquer acusado ou acusada sempre fala por último. Então, por esse motivo, em razão das testemunhas que ainda faltam ser ouvidas, Sari não foi interrogada”, disse.

Ainda de acordo com o defensor da ex-patroa da mãe de Miguel, ainda não há uma data definida para a próxima audiência. “Foi uma audiência que envolveu bastante emoção. Todos sentem novamente o fato e, do ponto de vista da defesa, estamos aguardando com muita serenidade a inquirição de todas as testemunhas para que Sari possa ser interrogada e finalizar essa etapa da instrução criminal”, afirmou.

Caso Miguel

Miguel caiu do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, no dia 2 de junho. A queda aconteceu após a mãe dele deixá-lo com Sari Corte Real para passear com Mel, a cadela da família que a empregava.

No dia da morte de Miguel, Sari foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ela pagou uma fiança de R$ 20 mil para responder ao processo em liberdade.

Em 1º de julho, ela foi indiciada pela polícia por abandono de incapaz que resultou em morte. Esse tipo de delito é considerado “preterdoloso”, quando alguém comete um crime diferente do que planejava cometer.

Investigação

Segundo a polícia, a criança saiu do apartamento de Sari para procurar a mãe e foi até os elevadores do condomínio. Imagens das câmeras de segurança mostram que, por pelo menos quatro vezes, a primeira-dama de Tamandaré conseguiu convencer Miguel a sair do elevador social e de serviço.

Por meio de perícias, o Instituto de Criminalística de Pernambuco (IC) constatou que Sari Corte Real apertou a tecla do elevador que dá acesso à cobertura às 13h10, saindo do elevador em seguida. O laudo contradiz a versão dada pelo advogado de defesa dela.

O elevador parou no 9º andar, e a criança seguiu em direção a um corredor. Depois, parou na frente da janela da área técnica, escalou um vão e alcançou uma unidade condensadora de ar. Miguel tinha 1,10 metro e a janela, 1,20 metro. Marcas das sandálias que a criança usava atestaram que ele ficou em pé na condensadora.

Para descer de lá, Miguel pisou em um segundo equipamento do mesmo tipo e se dirigiu a um gradil que tem função estética. A criança escalou as grades e, ao chegar ao quarto “degrau”, se desequilibrou e caiu.

A perícia descartou a hipótese de que alguém estivesse com a criança no 9º andar. Para isso, foi calculado o tempo em que o garoto saiu do elevador e caiu no térreo: 58 segundos. Também não havia vestígios de outra pessoa no corredor em que a criança entrou.

Mobilização

O caso ganhou repercussão nacional, com manifestações de políticos e artistas na internet e criação de um abaixo-assinado virtual com mais de 2,5 milhões de assinaturas pedindo justiça.

No dia 12 de junho, durante um ato em frente ao prédio de onde Miguel caiu, manifestantes levaram cartazes com pedido de justiça e caminharam até a delegacia onde o caso é investigado. Eles exigiram que a ex-patroa da mãe do menino seja punida por homicídio doloso, quando há intenção de matar, e não culposo, como entendeu a polícia.

Em 9 de junho, artistas pediram justiça em um protesto em barcos no Rio Capibaribe, no Recife. Na véspera, 8 de junho, uma missa de sétimo dia foi celebrada virtualmente devido à pandemia da Covid-19.

No dia 7 de junho, outra homenagem a Miguel foi feita, mas em Tamandaré. Em 6 de junho, uma pintura com o rosto do menino foi feita na frente do prédio onde ocorreu o acidente.

Em 5 de junho, um protesto reuniu centenas de pessoas em frente ao prédio onde vive a família dos ex-patrões de Mirtes, com forte participação do movimento negro.

Em julho, parentes e amigos da família de Miguel fizeram uma passeata pelo Centro do Recife. No ato, o grupo buscou pressionar o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para dar prosseguimento ao caso, oferecendo denúncia à Justiça.

No dia 1º de julho, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) entrou com uma ação civil pública contra o prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB), por improbidade administrativa. É que o gestor contratou a mãe e a avó de Miguel como servidoras públicas, pagas com dinheiro do município, embora elas trabalhassem na casa da família.

Em junho, o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) confirmou que a mãe e a avó de Miguel eram contratadas da Prefeitura de Tamandaré. Durante a apuração do caso, foi descoberta outra funcionária-fantasma que prestava serviços particulares à família do prefeito.

Os técnicos do TCE fizeram uma visita à prefeitura de Tamandaré e constataram a contratação de Mirtes e Maria, além de Luciene Neves, que trabalha na casa de praia do prefeito. Segundo o conselheiro do TCE, Carlos Porto, isso implica em improbidade administrativa por estar sendo usado servidores com recursos públicos em trabalhos particulares.

O prefeito Sérgio Hacker afirmou, na época da morte de Miguel, em nota, que forneceu documentos ao TCE e ao Ministério Público de Pernambuco que demonstram que não houve prejuízo aos cofres públicos. Disse, ainda, que continuaria contribuindo com as investigações.