Da BBC News

Era noite e a maior parte dos passageiros dormia quando, exatamente 110 anos atrás, um iceberg interrompeu aquela que seria a primeira viagem do mais impressionante navio de passageiros até então construído, o Titanic.

O navio estava a 41 quilômetros por hora. Menos de 3 horas depois, já havia se tornado um naufrágio, afundado nos confins do Atlântico.

Seus destroços foram localizados apenas em setembro de 1985 — a embarcação dividiu-se em duas partes, separadas a 800 metros de distância, a 3.843 metros de profundidade, a 650 quilômetros do Canadá.

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A BBC News Brasil ouviu especialistas para apresentar algumas curiosidades instigantes sobre esse naufrágio que se tornou tão famoso.

‘Inafundável’

“Nem Deus afunda o Titanic”? A fama de “inafundável” tinha lá suas razões. “Para a engenharia, o Titanic ficou famoso porque foi o primeiro navio em que houve a aplicação de um conceito de projeto que visava a compartimentar o navio, dividindo-o em vários compartimentos, sendo que cada um seria estanque, ou seja, se a água inundasse um compartimento, não seria capaz de inundar o seguinte”, explica o engenheiro naval Alexandre de Pinho Alho, professor do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O problema, explica o professor, era que tal projeto esbarrou no desafio que era passar as tubulações e cabos elétricos ao longo do navio. “Qual foi a solução? Calcularam um limite razoável esperado [para inundação] em caso de avaria, concluíram que a água não chegaria até o teto, e criaram compartimentos mais ou menos estanques, ou seja, foram lá e fizeram uma proteção só até bem próximo ao teto”, diz Alho.

Não é preciso lembrar que o choque com o iceberg foi tão grande que tornou essa ideia insuficiente. “O rasgo que foi feito no casco alcançou metade do comprimento. Lógico que a água chegou até o teto”, acrescenta ele.

“O navio entrou em uma condição que chamamos de alagamento progressivo, um ponto a partir do qual não há mais como salvar a embarcação: você pode acionar todas as bombas, tomar todas as providências, não é possível tirar a água numa vazão maior do que ela entra”, contextualiza.

“O projeto já tinha sido divulgado na época como o de um barco ‘insubmersível'”, complementa o engenheiro civil Thierry Stump, construtor naval e navegador.

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“Uma das grandes defesas era que havia um monte de porões separados, com paredes semiestanques entre eles, de maneira que ainda que se rasgassem dois consecutivos ainda não seria suficiente para afundá-los.”

“Entretanto, o iceberg pegou lateralmente o barco e destruiu muitos anteparos e paredes transversais. Inundou muito mais do que a capacidade”, salienta ele.

Professor na Universidade Federal Fluminense, o engenheiro de transportes Aurélio Soares Murta ressalta que mesmo o sistema de fechamento dos tais compartimentos estanques acabou não funcionando como planejado. Culpa do forte impacto contra um material inferior ao aço utilizado hoje em embarcações do tipo.

“A batida foi tão forte que ocasionou uma torção na estrutura do navio. Essas portas não conseguiram fechar. Elas emperraram”, conta. “A metalurgia da época era diferente. O Titanic foi feito com o melhor aço disponível, mas isso é incomparável ao que temos hoje.”

O engenheiro metalúrgico Jan Vatavuk, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica que até a década de 1940 os cascos de navios eram feitos com chapas metálicas rebitadas — só a partir de então passaram a ser peças soldadas.

“Houve uma evolução muito grande das técnicas e dos materiais. A solda é um processo mais agressivo em termos de mudança de microestrutura na região fundida, já que coloca um material derretido para unir as chapas”, contextualiza ele.

“E a partir da segunda Guerra Mundial, o aço passou a ser fabricado com uma porcentagem mais baixa de carbono e mais alta de manganês. O grau de limpeza dos materiais também melhorou. Hoje o aço é um material mais tenaz, mais adequado a superestruturas.”

Vatavuk define os navios contemporâneos como “vigas elásticas”, capazes de suportar a flexão causada pelos constantes movimentos das ondas. “Em caso de grandes tempestades, suportam bem. Temos de evitar a fadiga dos materiais o máximo possível.”

Flâmula Azul

Mas em grandes acidentes sempre é preciso lembrar que há falhas humanas. Para os especialistas, no caso do Titanic havia um fator: a intensa pressão para que o navio fosse rápido, mesmo precisando enfrentar adversidades como uma região cheia de icebergs.

Isto porque havia um prêmio, instituído em 1839, chamado de Flâmula Azul, que visava a reconhecer e dar publicidade aos navios mais rápidos nas travessias transatlânticas. E o Titanic era candidatíssimo a ganhar a honraria.

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“Na época, os navios eram a maior obra de engenharia que a humanidade era capaz de realizar”, ressalta Alho. “Havia uma disputa entre as principais companhias e também as principais nações construtoras de navios do mundo. No caso, Inglaterra e Alemanha. Cada uma queria fazer o navio maior e mais rápido.”

O reconhecimento considerado oficial era o tal prêmio. “Os países disputavam isso”, comenta o professor.

E a primeira viagem de um navio era a melhor para conseguir bater esses recordes. Segundo o engenheiro, isso ocorre porque é quando a embarcação “experimenta as melhores condições para a travessia”.

“O casco e a hélice estão limpos, os motores em condições perfeitas… A primeira viagem é momento ótimo para atingir a maior velocidade possível. E o Titanic tentou fazer isso”, diz ele.

Há relatos de sobreviventes dizendo que o comandante do navio, mesmo tendo recebido a notícia de que havia icebergs nas proximidades, hesitou em diminuir a velocidade, justamente porque não queria perder a oportunidade de chegar o quanto antes ao destino final.

Irmãos do Titanic

O Titanic não foi filho único. No início do século 20, a empresa White Star Line encomendou três navios transatlânticos aos estaleiros da Harland and Wolff em Belfast. Projetados por uma equipe de ponta, deveriam ser os maiores, mais seguros e mais luxuosos navios do mundo.

“Os projetos foram muito divulgados na época”, comenta o engenheiro Stump. As embarcações foram feitas entre 1908 e 1915 e eram chamadas de Classe Olympic. Os dois primeiros a entrarem em produção foram o Olympic, em 1908, e o Titanic em 1909. O terceiro, originalmente chamado de Gigantic, começou a ser feito em 1911.

Curiosamente, os três se envolveram em acidentes. O Olympic entrou em operação em junho de 1911 e, no mesmo ano, colidiu com um cruzador. Foi reparado e voltou a navegar. Durante a I Guerra Mundial, a embarcação foi convocada pela Marinha Real Britânica para transporte de tropas — chegou a bater em um submarino alemão em 1918.

Voltou à operação civil em 1920 e só foi aposentado em 1935. Era chamado de “Velho Confiável”.

A viagem inaugural do Titanic foi iniciada em 10 de abril de 1912. Por muito pouco o navio não colidiu com uma outra embarcação logo na saída do porto de Southampton. Na noite de 14 de abril, houve o naufrágio histórico.

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O Gigantic também não teve carreira longa. Acabou rebatizado como Britannic e, requisitado pela Marinha Real Britânica, transformou-se em um navio hospital durante a I Guerra. Afundou em novembro de 1916.

Apesar de grandes para a época — tanto o Olympic quanto o Titanic foram os maiores do mundo quando ficaram prontos —, são navios de dimensões modestas comparados aos transatlânticos atuais.

“Era o possante da época, o gigante dos mares. Mas se comparado com um de hoje, parece um barquinho”, comenta Murta.

O Titanic media 269 metros de comprimento. Entre tripulação e passageiros, ele comportava cerca de 3,3 mil pessoas. O maior navio de passageiros do mundo atualmente é o Wonder of the Seas, que tem 362 metros de comprimento, acomoda 7 mil passageiros e 2,3 mil tripulantes.

Melhorias de segurança

O naufrágio do Titanic, uma tragédia que terminou com a morte de cerca de 1.500 pessoas, abriu um precedente para que diversas melhorias de segurança fossem adotadas. A evolução da tecnologia, de lá para cá, também contribuiu — é claro.

A começar pelo uso de equipamentos como radar. Os primeiros equipamentos do tipo em alto mar foram utilizados apenas a partir da Segunda Guerra Mundial. “Naquela época [do Titanic], era tudo no recurso visual”, explica Alho. “Um marinheiro ficava no alto do mastro para ver se conseguia localizar um iceberg. Era uma maneira precária, ainda mais com o navio andando na velocidade máxima.”

Melhorias de protocolo também foram instituídas. O Titanic terminou com muitos mortos porque nem equipamentos de salva-vidas havia para todos. “Como o navio ‘não ia afundar de jeito nenhum’, eles reduziram a quantidade de botes pela metade”, diz Alho.

“O acidente do Titanic foi um divisor de águas para a segurança”, comenta Murta. “Depois dele, navios passaram a ter normas estruturais para a fabricação, padrões de segurança e planos de evacuação consistentes.”

“E, claro, hoje radares e sonares identificam icebergs muito antes de um navio encontrar com ele. Além disso, as cartas náuticas, o mapeamento dos mares, tudo ficou muito mais sofisticado”, acrescenta ele.